domingo, novembro 21, 2010

Os Juncos Silvestres

Que belo exercício de contemplação e consagração a nível do amoroso e intelectual. Numa pequena vila algures no sul de França constroem-se personagens e pessoas, relações e performances doces e intrigantes pelas mãos de André Téchiné. À falta de conhecimento da restante obra do realizador (ainda) posso afirmar que Téchiné é uma revelação. É uma revelação na medida em que completa uma narrativa complexa à volta de quatro personagens dotados de uma forte relação interior individual, e ainda assim permite ao espectador a criação de uma ligação próxima com eles, pela especificidade de cada um e a globalidade abrangente do conjunto. Aqui fala-se de política e interesses culturais, mas mais que isso da juventude, do amor e do auto-conhecimento e descoberta de amizades e motivações, com as selvagens paisagens de um lugar por corromper como pano de fundo, lugar esse onde os corpos se podem sentir na totalidade sem as ambiguidades e desdéns trazidos pelos grandes meios urbanos, e onde cada um é livre da sua interpretação e fascínio. Aqueles que teriam todas as condições para um progressivo afastamento aquando a chegada a uma idade de diversas obscuridades como é a adolescência, neste Juncos Selvagens aproximam-se - melhor, complementam-se, numa completa e magnética reflexão a que o filme se propõe.
As imagens de um éden idílico não param de surgir, e o espectador é levado a viajar e contemplar lugares e corpos cujas curvas e intenções se mantêm sagradas, enquanto fora daquele sítio guerras e tensões continuam a insurgir o seu destaque no que é o estado do mundo actual.

segunda-feira, novembro 08, 2010

Kiarostami e Copie Conforme no Estoril

Abbas Kiarostami é, como deve ser de conhecimento geral, um génio vivo, uma autêntica fonte de inspiração. No Estoril Film Festival, o artista marcou presença com o recente Copie Conforme, uma narrativa que deambula entre a ficção e a realidade, como já seria de esperar. Neste filme, o realizador opta por se infiltrar no aniversário de casamento dos seus protagonistas centrais (grandes Binoche e Schimell) em Itália, cuja relação disfuncional, verificada na naturalidade dos seus diálogos (melhor dito: discussões), remete o espectador a um nível diferente de percepção do real. A obra de arte é o objecto de estudo dos dois, que tentam definir, até o final do filme, o que é realmente sentido, o que é realmente original, e qual o valor de uma cópia / duplo de um original, comparticipando num escape que fazem sobre o cerne da relação amorosa de ambos. É um filme que sabe a Kiarostami, com todo o seu desejo de chegar à verdade (como referiu na masterclass), com toda a simplicidade e leveza de que é conhecido. Enfim, percebe-se por que João Salaviza, que lá marcou presença, se apressou a considerá-lo como “o melhor realizador vivo” – Copie Conforme é mais um filme que, próximo do gigantesco Shirin, coloca dúvidas universais (no meio de tanta confusão linguística), liberta o espectador para um sentimento activo na percepção da criação. Como o iraniano acaba por confessar, somos nós os artistas, somos nós quem completa e tem o poder de pôr um ponto final a uma qualquer obra, a um qualquer objecto digno daquela atenção particular que nos faz falar de Arte.
(e gostava também de me orgulhar por ter um autógrafo do realizador. a prova.)

quarta-feira, novembro 03, 2010

Lola

Chove, para duas Lolas, a grave ideia de continuidade de vida. Se ambas se entrecruzam por uma morte passada, também ambas se entrecruzam por uma luta que acaba, sem que queiram, por uni-las. Ambas querem que a vida continue, caia e se purifique, tal como a chuva. O que, também, acaba por justapô-las numa só Lola é, sem dúvida, o facto de essas lutas não serem directamente por elas, mas pelo outro, pelos netos, traçando assim uma compaixão e descentração imensas, santificadas pelos grandes planos de Brillante Mendoza, cuja impecabilidade na realização e fascínios por tons amargos de azul tornam inevitável este trocadilho: a sua câmara é tudo, mais alguma coisa e também brilhante. E o seu jogo com opostos é de uma habilidade genial. Entenda-se por opostos a poesia do seu realismo social; o distanciamento emocional com que filma, de perto, as protagonistas; o humor que encontra nos contextos mais dramáticos (relembro a cena dos peixes, ou da casa de banho avariada). Mas a mesma câmara enche, à medida que se desenrola o moroso processo de luto aliado à presença opressiva da água, uma vaga e triste ideia de eterno retorno, de que tudo voltará ao mesmo, de que tudo aquilo não passa de uma história que voltará a acontecer de novo, e de novo, e de novo. Como a chuva.