sexta-feira, setembro 24, 2010

Nota

Parece, infelizmente, que o TinyPic, portal que alojava todas as imagens das publicações dO Sétimo Continente bloqueou, eliminando-as definitivamente, como triste e revoltante consequência - o Photobucket parece uma boa alternativa. Apesar de tudo, o blog continua vivo, bem motivado pela recente e activa presença do meu amigo Paulo, que passará, claro, a escrever aqui, tal como o Rúben o fez e continua, neste e naqueloutro momento. Para finalizar a pequena nota, há que deixar os leitores com uma grande e feliz notícia: fomos, oficialmente e a partir do dia de hoje, seleccionados para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde passaremos, enfim, a ser alunos.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Lost Highway

É bizarro perceber que se passaram duas horas e um quarto e eu completamente concentrado numa trama que se tenta perceber mas que nunca - e eu acredito no que estou a dizer - mas mesmo nunca se vai plenamente desmistificar.
David Lynch é um senhor dotado da capacidade de discutir a verdadeira essência da realidade e de a desconstruir em prol do culto, da beleza, na peculiaridade e do transcendente. Acredito mesmo que, muito para além do simples espectador, nem o próprio cineasta consiga descodificar plenitude narrativa naquilo que montou, em Lost Highway.
Este filme é uma obra completa na sua existência surrealista mas não mais que isso, por não conseguir captar a realidade do mundo comum e em vez disso extrair dela tudo o que lhe é sinistro, erótico, esquivo e artificialmente belo, e ainda bem!
A acrescentar apenas a sensação de incógnita, inconstância, deambulação lógica e formal, e pura mestria com que se fica desta, definitivamente, obra de culto.

sábado, setembro 11, 2010

Moonlighting

Penso que nunca esquecerei a minha estreia com Skolimowski. Nunca vi, ao contrário do Rúben, o Quatro Noites (apesar de este ser, como parece óbvio, um caso a colmatar em breve), daí que conheci uma Anna diferente – a Anna amada, fora do alcance do protagonista, a Anna fantasma, a Anna que nunca vemos, a Anna de Moonlighting. E, este, é, não há dúvidas, um grande filme, um pedido de ajuda do polaco (expatriado entretanto na Inglaterra, tal como o protagonista), um pedido de liberdade, de amor e de compressão, uma carta de amor àqueles que querem regressar às origens e que não conseguem. Ou porque não podem, ou porque não querem. E todas aquelas desventuras e diversões nos parecem simbólicas, mágicas, leves como uma pena e, ao mesmo tempo, intercalamo-nos com o olhar realista, duro e terrivelmente pessimista do cineasta da hostil Inglaterra e da longínqua e perdida Polónia, em tempos de Guerra Fria. Mas felizmente há luar. E é isso que o torna, em tão grande parte, único e completo. Provavelmente, nem sei bem, vê-lo na Cinemateca moldou aquela deliciosa projecção em algo mais, para mim. 

Não importa, realmente. Lembro-me tão bem do filme como me lembro da semana passada – dos aspirantes a estudar cinema, daquele óvni amarelo tão característico de Amadora, do Rossio a brilhar de noite e de dia, do professor de realização a perguntar o que é o cinema só para falar do transcendente salto gramatical de Coppola, das referências histéricas e incontidas de grandes Cineastas como quem os tem na palma da mão, do medo de não podermos nunca mais ver o farol que Pedro Costa tantas vezes contemplou. Lisboa foi, e vai continuar a ser, um sonho.

sexta-feira, setembro 03, 2010

Quatro versos a Anna

Serei sempre um apreciador do diminuto. Em tudo, mas talvez principalmente no cinema, ocupa o aparentemente insignificante, o quase imperceptível, o lugar onde se manifesta a glória, a nobreza que torna sublimes todos os caminhos, e elevados todos os movimentos indiscerníveis que a eles nos conduzem.

Há, assim, um momento em "Quatro Noites com Anna" que, por si só, o teria eternizado na minha memória, momento esse que, pode dizer-se, me conquistou decisivamente: evoco a cena em que, após o enterro da avó, a personagem central se senta na penumbra da sua casa a tocar acordeão. Este instante, mais que qualquer outro, é ilustrativo do profundo abandono a que o protagonista está votado, não apenas pelas circunstâncias em que se desenrola a sua existência, mas pela sua própria personalidade. Retraído, socialmente desajustado, com evidentes dificuldades em explicitar as suas motivações, por tudo isto inevitavelmente incompreendido pelas poucas sombras com que o cruza o seu quotidiano ou o ofício de cremador, não encontra outra - mais genuína? - forma de honrar a defunta que tocar um instrumento que descobriu entre os pertences dela.

Privado, após a morte da única pessoa com quem, como percebemos mais tarde, porventura tenha conseguido estabelecer uma relação palpável, de todo o calor humano, desvenda uma maneira de se aproximar de uma vizinha que gosta de observar sorrateiramente da janela da sua casa - Anna, uma enfermeira cuja violação ele presenciara anos antes e pela qual foi, injustamente, declarado culpado.

Com ela - mas sem que se esta se dê conta - passará quatro noites, cada uma testemunhando o sentimento benévolo, altruísta, que o faz regressar sucessivamente ao quarto dela, mas que sabe impossível de concretizar. Não é de espantar que, enquanto amante, ele se resigne à única possibilidade de viver esse amor: comovente é, contudo, a forma como o faz, através de simples gestos como o costurar um botão de uma camisa, ou o lavar a loiça que uma festa de aniversário esqueceu pela divisão onde Anna dorme.

A melancolia, essa mesma que parece acompanhar as neves que cobrem a paisagem do pequeno vilarejo onde se desenvolve a acção, e que assenta bem em toda a obra que se debruce sobre os mistérios da condição humana, parece, mais que Anna ou o seu trágico enamorado, ser a verdadeira personagem principal, marcando presença em todas as situações, todos os silêncios e todos os locais, inclusivamente compassando os movimentos de câmara que os materializam em filme. Como o instante final, que nos faz antever, como uma angustiante confirmação, o que está reservado àquele que acompanhámos até ali.

Não me lembro, confesso, do nome da personagem de que vos tenho falado, nem fiz ainda o esforço de o procurar. Isto talvez porque as grandes personagens não têm nome. Têm, somente, vida.

quarta-feira, setembro 01, 2010

Chungking Express

Falar de cinema é difícil. Às vezes debato-me com um problema, que surge neste ou noutro dia e que me consome algum tempo de reflexão antes de escrever sobre algum filme que vejo: como falar e sobre o que falar desse filme? Ter uma experiência cinematográfica, boa ou menos boa, será sempre ter uma experiência única e irrepetível de vida, não importa quantas vezes a quisermos ter e a revisitarmos, de alguma forma. Como transpor, com palavras e totalidade, a poesia de Tarkovsky, a misteriosa revelação de um Werckmeister Harmonies ou de Uma Odisseia no Espaço, ou a desinteressante vivência de Os Condenados de Shawshank? A impossibilidade parece-me ser a resposta e, diante desta evidência, muitas são as vezes em que hesito escrever neste espaço, em partilhar o que em tempos me pode ter sabido a uma iguaria. Marcel Martin, autor do famoso A Linguagem Cinematográfica, defende que é necessário que haja uma distanciação entre o público e a obra executada para que o seu valor estético e ideológico fundamental seja, com mais certeza, captado (senão, pelo contrário, restar-nos-íamos à redutora alienação da realidade, vivendo, apenas e só, o cinema). E falar sobre os filmes, sobretudo aqueles que mais me tocaram e inspiraram, ajuda-me a manter essa distanciação, ajuda-me a recolher informações e a crescer enquanto cinéfilo com aspirações a qualquer coisa de maior. Somos todos filhos do cinema, o nosso pai mais novo. As suas características e linguagem absoluta fazem-me crescer. E, sobretudo, as suas possibilidades fazem-me acreditar que a sua criação constante é o futuro.

E isto para começar a falar de Chungking Express? Alonguei-me. O cinema de Kar-Wai é sem dúvida um cinema que adoro, este pedaço aqui é bom, é delicioso. Colorido, sobretudo cheio em pormenores, em riqueza visual, como seria, aliás, de esperar. As suas personagens navegam no caótico e melancólico mundo da desilusão e do desencontro do tempo, na sempre inevitável solidão. Mas é esta certeza a que o chinês chega sempre que faz, contraditória e precisamente, com que ele dê mais atenção, pelo menos nesta obra, à facção divertida, quer dizer, irónica da vida. É difícil esquecer a sua inacreditável obsessão pela California Dreamin’ que, depois desta fita, estará sempre associada ao nosso sonho de chegarmos à nossa Califórnia, de tomarmos o Chungking Express ou o comboio com direcção a 2046, ao nosso sonho de nos retirarmos deste mundo, ao nosso sonho de nos ultrapassarmos e realizarmos. É um sonho, que nem a magia de Kar-Wai consegue realizar.