segunda-feira, agosto 30, 2010

La Captive

La Captive é uma história de amor, mas não uma história de amor comum. É uma história de amor dos contos mais idílicos e puros, onde vale até morrer pela pessoa que se ama; onde por muito insustentável que esse amor se desdobre vale a pena sofrer, revisitar as maiores tragédias e sobreviver às mesmas, de forma a, de seguida, enaltecer o escudo com se irá batalhar por esse sentimento tão incongruente mas de verdadeira beleza e poesia.

Foi o primeiro filme que vi da belga Chantal Akerman e provavelmente o único pois não quero desarmar a ideia de perfeição minimalista com que fiquei desta autora.

O filme trata, em primeiro plano, da relação de afecto entre os dois principais personagens – Simon e Sylvie -, que vão surgindo os seus egos num ambiente muito pouco comum e de uma peculiaridade física, formal e transcendente tal que só por si vale a pena assistir; e, em segundo plano, das revoluções intrínsecas que estes vão desenvolvendo ora entre si, ora em comunhão entre a rapariga e a imagem das suas líricas amantes e musas.

Ele vive o seu amor da forma mais intensa que conhece de si – cheio de manias e aparatos, consegue, pela vontade em Sylvie, descurar de si e entregar-se à enamorada. Ela, por sua vez, envolve-se numa verdadeira campanha de forma a manter a sua paixão e ternura, sendo que se sente atraiçoada pelo corpo e mente que a empurram em direcção oposta a Simon e a aproxima da sua verdadeira essência humana – Sylvie deseja amar para sempre o rapaz como ama na fugacidade dos momentos todas aquelas raparigas e todas aquelas formas femininas que não entende, e ao mesmo tempo percebe que, mesmo tentando, não conseguiria desarmar o seu carinho por Simon.

A narrativa avança, e à medida que isto acontece, a relação dos dois vai-se desfazendo, para depois, nas sequências finais, se encontrarem novamente, não pelo sentido instantâneo dos momentos mas sim pelo que ambos sabem poder e querer sentir, numa amplitude tal que revela o que instintivamente nos separa do animal comum – o sentimento, a racionalidade.

O espectador é confrontado pela edificação de duas estruturas completamente opostas e sem intermediários que dão imagem a duas formas de viver o amor: Simon quer sentir-se omnipotente, saber quais os sonhos e pensamentos de Sylvie, quer conhecê-la na sua totalidade para depois poder absorver os pedaços mais ínfimos da sua pessoa; ela encontra a verdade do sentimento na realidade interior do parceiro da qual o seu conhecimento está privado, permitindo um determinado espaço e mistério entre os dois, que lhe fomenta o querer.

Assim Simon faz dela sua cativa, aprisionando-a a si e ao seu espaço pelo sentir – e quem não gostaria de estar assim preso?

É de ressalvar que o filme é baseado no romance de Proust, La prisonnière.

segunda-feira, agosto 23, 2010

Ordet - A Palavra

Vergílio Ferreira, no seu Para Sempre, tentando responder-se recordando episódios da sua própria narrativa, questiona, por diversas vezes, qual é, de todas elas e de todo o falatório que a humanidade prossegue ao longo dos tempos, a palavra essencial, a palavra última, a palavra verdadeira, a Palavra da Vida. À sua semelhança (e à da restante demanda existencialista da filosofia, particularmente a de Kierkegaard), Dreyer procede à revitalização da busca pela Palavra, da busca pela Vida – e assim cria, após uma série de dificuldades, Ordet, que brilha no patamar das mais brilhantes das obras-primas e, sobretudo, no das mais essenciais. Neste conto belo e ecuménico como poucos o conseguem ser, construído como que num seguimento de detalhados e portentosos frescos (perfeitos enquadramentos, planos sequência, luz e composição cénica), assistimos ao choque intemporal de ideias, à discussão inútil de mentiras desacreditadas. Assistimos, também, à hipocrisia das religiões institucionalizadas (particularmente as referentes ao Cristianismo), à falsidade beata e obscura dos seus crentes, mas, ao mesmo tempo e com os mesmos contornos, à absoluta crença na racionalidade científica e na negação do inexplicável ou do concretamente inexistente. Tanta cavaqueira e superstição, tantos monólogos e diálogos, para nos restarmos ao silêncio: entre tudo, todos e todas as convenções (ou disparates) sociais, morais, enfim, ideológicos, assistimos à Fé do ignorado, do ridicularizado, do impossível e do inacreditável, nas ruínas ou nos montes, sobre um tecto de uma casa a querer sê-lo ou sobre um eterno e desconhecido céu. Tanta discussão para nos restarmos à verdade, ao incompreensível, ao sorriso e lágrimas finais, à aceitação da Vida e da Palavra.

domingo, agosto 22, 2010

A arena de João Salaviza

Tomei a liberdade de fazer upload, no Youtube, da curta-metragem “Arena”, escrita, montada e realizada por João Salaviza, conhecida por tê-lo tornado no primeiro português a ser galardoado para uma Palma de Ouro (de curtas ou longas-metragens), no ano passado, em Cannes. Quando a vi na exibição conjunta do pobre “Taking Woodstock”, de Ang Lee, apreciei bastante a linguagem deste cineasta tão novo, que, em comparação ao precedente “Duas Pessoas” (que se encontra facilmente na Internet), um trabalho que Salaviza fez para a Escola Superior de Teatro e Cinema enquanto lá ainda era aluno, mostrou que gosta de explorar a singularidade das suas personagens e particulares casos que se redimensionam à escala global. Penso que Salaviza é exímio na sua mise-en-scène, e a tomar rédeas de acção com sobriedade e acalmia. Gosto que ele vá contemplando a densidade emocional que se vai sobrevindo ao longo daquela pequena trama, que toque na solidão, no aprisionamento existencial e no vislumbre de uma liberdade inalcançável com grande sensibilidade, sem pretensões ou fulgor de querer tudo mostrar. Daí que “Arena” seja um pedaço de cinema exemplar, sobretudo para o nosso país, não para mostrar que tem que haver qualidade (pois esta já existe, só que não pode ser desenvolvida), mas sim para alertar os portugueses, e sobretudo quem os governa, para o caótico estado em que este se encontra em quantidade e valorização.

quinta-feira, agosto 19, 2010

O Quarto do Filho

Que mudou no Nanni Moretti que se mostra desde Querido Diário? Que mudou no Nanni Moretti que é desde O Quarto do Filho? E que muda no Nanni Moretti quando, a todos os dezanoves de Agosto, comemora o seu aniversário? Recordei-me dele há pouco e, sabendo que hoje o cineasta conclui 57 anos, relembrei o meu preferido do italiano. Há poucas razões pelas quais posso considerar La Stanza como um dos filmes da minha vida. Agrada-me sobretudo a sua simplicidade, a sua sinceridade. Não é comum, mas universal. E daí depositar nele a verdade de uma relação de família. É sobre um pai e um filho, a morte e luto, as vivências e as recordações. A dialéctica absurda da existência humana. E o protagonista, psicanalista deparado em constância com uma das mais essenciais questões de todas – qual é o significado de tudo isto –, personifica uma rendição subtil e misteriosa, mas absoluta: a aceitação última de tudo que vai acontecendo e marcando o Passado e da impossibilidade de a entender. E é, finalmente, sobre o aproveitamento de tudo em totalidade. Daí as várias sequências do carro e da estrada. Daí a sequência final. Parabéns, Moretti.

domingo, agosto 15, 2010

Shirin

O mais provocatório derradeiro pedaço de arte da última década foi assinado por Abbas Kiarostami e manter-se-á invisível até o fim dos tempos. É uma arrebatadora experiência cinematográfica, sem precedentes e que se tem apenas uma vez na vida, que se lança a uma simples, ainda que bastante ousada proposta – a de captar, literalmente, a essência do espectador. Assim é que o iraniano filma cento e quinze mulheres numa sala de cinema, as quais, por sua vez, sentem a adaptação viva de um poema persa do século passado.

E eu, que acabo de ver o filme, que vi, ou, melhor me questionando, quantos terei visto? Abbas parece realizar dois filmes diferentes – o que todas aquelas mulheres vêem, e que nos chega pelo som, pela luz e pelas emoções transpostas no segundo filme, que, sinteticamente, se resume ao que vemos daquelas mulheres. Entre o eu-espectador e o ela-espectadora há, e não há, um imperceptível abismo que nos separa daquele filme – porque ela vê e sente Shirin, e eu vejo e sinto a pessoa que vê Shirin. E é tão desolador, tão cru e imprevisto ser-se atacado por esse tipo de voyeurismo divino, um que nos permite, vezes sem conta, observar cento e quinze lindas mulheres, que contam, com as suas caras, cento e quinze distintos e incorpóreos filmes. Aceder ao profundo da actriz-espectadora e contemplá-la em sublime esplendor, à mulher que Vê o filme e à mística libertação que permite com que ela o Veja, alienando-a (ou refugiando-a) de todo o mundo social que está fora daquele espaço, de todos os anéis, daquela roupa e, por fim, daquele véu. Resta-se o olhar. Aquilo, todos aqueles sorrisos, espasmos de medo e ansiedade, todos aqueles olhares, e todas aquelas lágrimas são pura vida, são existências, únicas, que ali, naquela sala de projecção, durante uma hora e meia, se juntaram em máxima potência, sem se aperceberem da quantidade de universos e sensibilidades que se aliaram. Quantos filmes dariam cada uma das suas vidas? Quantas alegrias, quantos triunfos, quantas desilusões, quantas angústias, quantas questões, quantos momentos? Quantas desventuras do coração, quantas revelações? Porque, ao mesmo tempo, é como se estivesse lá, sentado e ao lado delas, mas sabendo-me ao lado delas, para elas como mais um anónimo que se junta ao laço cósmico que o Cinema, suprema, humana e sorrateiramente, concebe entre todos os espectadores daquela indefinível coordenada espácio-temporal.

Shirin é um mistério, um espectro, uma revelação. Para quem ama o cinema, ou para quem ama a vida, Shirin é, para além disso, obrigatório.

segunda-feira, agosto 09, 2010

J’ai tué ma Mère


É um Gus Van Sant que se casa com Wong Kar-Wai e tem Pedro Almodóvar como amante. Mas é, também, antes de tudo isso, íntimo, belo, humano,… especial, como o protagonista detestava ser catalogado. Considero bastante assombroso como o canadense Xavier Dolan-Tadros, que vestiu a pele de actor, produtor, argumentista e realizador, apenas com dezanove anos, no seu primeiro filme, chega a um patamar de sobriedade e unicidade tão vincado e forte em todas as fases do trabalho. Não me admira, também, que os críticos tenham recebido J’ai tué ma Mère com particular estranheza, uns observando a atípica construção narrativa e estética com amor, outros com repulsa, focando-se no narcisismo da obra semi-auto-biográfica (mas não são todas?).

«Matei a minha Mãe» é um «Tudo sobre a minha Mãe» que estuda sobre as relações familiares na sociedade contemporânea, focando-se particularmente na de um adolescente de dezasseis anos, atrevido, egocêntrico, explosivo como é dado na idade, fervilhante em ideias e criações, apaixonado pelo namorado, que discute constantemente com a mãe – e esta, por sua vez, é sarcástica mas complacente, frágil mas mascarada, esforçada mas incapaz de compreender o seu fruto. E é pela oposição tão demarcada de personalidades e a desconstrução do choque entre ambas, associado ao irremediável complexo de Édipo, que faz com que tudo flua com naturalidade, sem maniqueísmos morais. As discussões, engenhosamente arquitectadas, só demonstram a sinceridade e potência com que o cineasta faz transpirar as suas personagens e as circunstâncias por onde estas caminham, debruçando-se sobre um tipo de amor disfuncional e bipolar, pelo outro e por elas mesmas, que atinge o cume do entendimento na distância e no silêncio e não nos sucessivos “amo-te” e “odeio-te”que perfazem os diálogos entre mãe e filho. 

E finalmente Xavier mostra ter um excepcional bom gosto na sua criação no ponto formal, confluindo com a originalidade e a matemática dos filmes independentes mais recentes, através de uma atrevida mas harmoniosa montagem de planos minuciosamente decorados e pensados, muito à semelhança de Tom Ford, por exemplo. Mas agradou-me como ele, que ainda está tão fresco, tão vivo e tão jovem, não se resta à técnica e à sua experimentação, mostrando como não se tornou escravo desta, construindo uma docu-ficção que se apresenta como uma interessantíssima carta de amor à mãe a à sua intemporal figura.

sexta-feira, agosto 06, 2010

Hannah e as suas Irmãs

É já sabido pelos leitores deste espaço que Woody Allen se mantém como uma referência minha quando falo do cinema como arte, do cinema como procura essencial do que somos e das grandes questões da vida. E da morte. Penso que ele é dos pouquíssimos cineastas que consegue vislumbrá-las essenciais, com um olhar muito preocupado e, ao mesmo tempo, relaxado, reflectindo e rindo-se delas. É precisamente sobre elas que, muito à semelhança do que se fez com outros trabalhos do norte-americano (como Nem Guerra, Nem Paz, etc.), esta comédia se debruça, sem, contudo, as colocar como principal pano da trama. A razão pela qual o tom das suas obras se mantém a referida é simples e única, mas eficaz – o facto de Allen se defrontar com uma vida enigmática e impossível de resolver, e que assim permanecerá até o fim dos seus dias, com toda a tragédia e ironia que lhe é inerente. É, precisamente, com Hannah que isto se demonstra com mais clareza, por via da personagem secundária encarnada pelo homem, um hipocondríaco neurótico que busca o significado da vida com Sócrates, Nietzsche, a religião católica, uma tentativa de suicídio, um filme de infância e o achado novo amor. É, também, este que sintetiza a essência desta obra que viaja por dentro de várias cenas de casamento, passando pela traição, a lealdade, a irmandade, o valor da família e a paixão – tudo sabe a um tragável (mas misterioso) conjunto de acasos, como se a própria vida fosse assim mesmo, para ser, só e simplesmente, vivida.