sexta-feira, julho 30, 2010

Sátántangó

É, precisamente, quando as chuvas de um Outono pardacento dão início na Hungria da decadência do comunismo que Béla Tarr decide abrir o seu monumental e híbrido épico, fazendo-as permanecer eternas na melancolia apocalíptica com que o filme se encontra ambientado.

Também é a partir do segmento simbólico que dá início a Sátántangó que percebemos do que se propõe o húngaro a tratar – do gado ao qual o homem pertence e do seu contínuo e anedótico estado de animalidade –, tal como o estilo, único e deslumbrante, com que ficará imbuído. Antes de drama (ou comédia?), e antes de qualquer outra convencional categoria narrativa, há que tratar esta obra-prima como uma profunda e misteriosa alegoria, um ensaio não apenas político e anti-capitalista, mas uma jornada que perscruta os caminhos da humanidade e desdobra o véu para um negro futuro. Explorando, desencantado, o universo de uma aldeia perdida por aí, onde inundam a corrupção moral e as desmedidas ambições materiais que preenchem o colossal vazio da alma do seu povo, somos confrontados com a chegada de Irimiás, o homem que todos julgavam morto, que acaba por se revelar, diante dos seus planos manipuladores (que denunciam, duplamente, a ingenuidade e ignorância das pessoas e uma vida regida pela lei do mais astucioso), tão ou mais diabólico e conspurcado do que os restantes, e somos confrontados, também, com a sede de morte e comportamentos levados pelo impulso animalesco, representada, com mais força, pela sequência de Estike, a criança que, após torturar e envenenar o seu gato, se suicida. Talvez este segmento resuma a essência derrotista e algo niilista de Sátántangó, o modo como vê que o homem está perdido em si mesmo, num mundo onde o império do egocentrismo se adivinha inevitável. Mas escrevo apenas o primário, o vislumbre daquilo que ainda pa(/e)rece indecifrável e merecedor de reflexão.

Tarr embebeda-nos com os seus lentos, anti-maniqueísta, naturalista e ascético olhar e perspectiva, a tal ponto que o confundamos entre as múltiplas perspectivas dos protagonistas, os campos abandonados, as estradas lamacentas, a porta e a janela estáticas mas vivas, a música e a noite eternas, e, ao mesmo tempo que cria aquela que não é mais que a anedota cósmica da vida, dança connosco, durante sete horas, um tango revelador da miséria para que, irrevogável e lentamente, caminhamos juntos, como o rebanho que eles próprios criaram.

2 comentários:

  1. Actualmente, ninguém filma como o Béla Tarr. P'ra mim é o melhor cineasta em actividade.

    ResponderEliminar
  2. Tenho que ver mais dele, Álvaro, mas se há algo em que posso totalmente concordo é nisso, ninguém filma como Tarr. :)

    Abraço

    ResponderEliminar