quarta-feira, junho 02, 2010

Sozinho contra Todos

O filme que precederia o genialíssimo Irreversível, realizado a partir de uma prequela de quarenta minutos (Carne), todo ele é um nada irredutível, uma grande obra que expira implacável e brutal força.

Sozinho contra todos, o protagonista, aterrorizante ex-carniceiro de cinquenta anos perdido numa França em ruínas e desemprego, com um ódio colossal a quem se lhe ponha à frente, preconiza a existência a que Nietzsche negou qualquer significado, onde se vive um tempo de forma escusado, onde a cada homem cabe a sua moral, onde a sociedade burguesa perde a sua legitimidade face à angústia, raiva, desejo de morte e de desejo animalesco do pobre, que cuida da sua vingança. Para Gaspar Noé, nada tem significado, nem o amor, nem o trabalho, nem o outro, nem a vida, que, aqui, é retratada como se o mundo fosse imundo, apenas e só, como se o homem, como é dito, se restasse numa básica linha contínua – “nascer contra a sua vontade; comer; enfiar a piça; dar vida; morrer”. E, para ele, que filma e monta em plena revolta, tendo apenas a preocupação de se afastar o mais possível do idílio e harmonia formais, tudo se resume nas tiras que faz explodir durante a longa-metragem, gritando, ao público, que VIVER É UM ACTO EGOÍSTA ainda que SOBREVIVER seja UMA QUESTÃO DE GENÉTICA. E assim é. Caberia, no mundo de Seul Contre Tous, à humanidade, limitada à sua designação (ou função?) de pecadora inata, e à sua condição de ser feita à base de carne e osso como qualquer outro animal, ter consciência da sua insignificância e rebelar-se face a tudo, a fim de exaltar a potência energética que dentro de si reside e alcançar o caos. É obviamente obrigatório ainda que o realizador francês queira decalcar a ideia de que estamos perante um filme – a imprevisível tira que surge ao espectador, vous avez trente secondes pour quitter la projection de ce film, é demonstradora disso mesmo, para além de reflectir sobre a violência, saiba-se desde já que aqui não gratuita, espalhada pelo mundo globalizado em que vivemos. 

Aliás, imprevisível é, sem sombra para dúvidas, a palavra que melhor define o estilo dilacerante da película, criando-se uma espécie de nova linguagem, sem regras, bem a condizer com o tom da narrativa que se vai contando. E, ainda que tudo seja único, há uma base que põe Noé em comum a todos os outros realizadores, tal como o seu protagonista, único mas, ao mesmo tempo, insignificante como todos os outros seres. Provavelmente, estarão ambos condenados à solidão, como todos nós.

11 comentários:

  1. Noé... uma fascinante recomendação, não?

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD - A Estrada do Cinema

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  2. Um grande filme, a mostrar que Noé é um caso sério no panorama francês e talvez o autor que faz o cinema-choque com maior substância!

    Viste o Carne antes?
    Este é o seguimento...

    Niilista a um nível que poucos chegam!

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  3. Esta história deste tal cinema-choque ou "new french extrimity" sempre me soou um bocadinho a falso, apesar de eu gostar de, por exemplo, François Ozon (não vejo o choque no cinema dele, mas críticos são críticos).

    Isso afastou-me sempre de Gaspar Noé. Mas estou para ver o afamado Irreversible um dia destes.

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  4. Antes de vos responder, aconselho a verem o trailer, simples mas interessante, no Youtube, que mostra bem como este filme pretende ser uma dura crítica à França contemporânea: http://www.youtube.com/watch?v=VtPSMkXhXpg

    Roberto... se é! Adorarás com certeza, não sei se mais que ao Irreversível, mas prepara-te, é um filme deprimente, violentíssimo, negríssimo.

    Neuroticon, sem dúvida alguma, "um caso sério" a ser estudado, visto e revisto. Vi, sim, e gostei bastante. Apesar de não tão extremista, há um quê de surrealismo ali e uma certa preparação para as suas longas-metragens. E sim, extremamente niilista, como poucos vi.

    Carlos, o choque é subjectivo, obviamente. Chamá-lo-ia novo realismo, soa-me mais certeiro tendo em conta que os filmes pretendem filmar uma facção, da forma mais realista e dura possível, violenta da sociedade, extremista e - lá está - "chocante. Gaspar Noé não se põe com meias tateias e mostra a violência de forma quase voyeurista, mas fá-lo quase como Haneke, mas de uma maneira mais óbvia: criticando-a, de forma subtil. Irreversível é um dos meus filmes preferidos, tem uma carga filosófica poderosíssima e universal, que, quando vires, ou te fará repugná-lo ou pensá-lo e adorá-lo. Espero sinceramente que o caso seja o segundo. Depois diz-me alguma coisa. ;)

    Abraços a todos.
    (e hoje faço anos, onde estão os parabéns?) :P

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  5. Muito bem escrito e a questão de todos nós morrermos na solidão é bastante pertinente.

    Abraço
    Cinema as my World

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  6. Eh pah parabéns atrasados! :D

    Excelso texto como o costume, e a minha curiosidade para ver (sei que o texto não se refere a ele directamente) Irreversível aumenta :D

    Abraço

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  7. Sim, Bruno, sem dúvida...

    E obrigado, JB ;) Vê Irreversível sem expectativas.

    Abraços

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  8. Já vi e não gostei assim tanto de Irréversible.

    É um exercício brutal de cinema, com aquela câmara e o som de altas e baixas frequências a fazer dele uma verdadeira experiência sensorial.

    A narrativa invertida também se aplica muito bem, dado que nos é permitido ver e julgar as acções fora de contexto.

    Mas fora isso... tenho demasiadas coisas a bloquear-me a apreciação do filme. Fiquei com má impressão de Noé, apesar de todo o talento que revelou ter.

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  9. Carlos, há mais em Irreversível que podemos pensar. Há toda uma subversão formal que o torna inédito, e uma percepção de tudo diferente. É natural que a primeira reacção seja de nojo, de repulsa. Comigo foi assim. Mas esse foi precisamente o objectivo dele, de impressionar, de chocar, mas de obrigar à reflexão. Ele tem uma visão ultra-negativista do ser humano moderno, e gosta de mostrar constantemente a irreversibilidade das suas acções descuidadas. Há um detalhe no filme de que falarei em breve no blog sobre a vingança e que penso que dá uma carga ainda mais forte a isso. Posto isto, penso que deves digerir ainda. É difícil, mas as grandes obras-primas, por vezes, são de início intragáveis...

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  10. Nada disso. Não há grande sentimento de repulsa. Passou-me quase indiferente. Mesmo a cena da violação, não me impressionou minimamente.
    Repulsa talvez apenas o espancamento com o extintor, mas isso é natural, é violência ultra-realista.

    Para mim Irréversible não é nenhuma obra-prima. É tecnicamente magistral. Mas é fruto de um realizador que parece procurar o choque a qualquer custo. E isso é perigoso.
    Além de ter um final miserável e previsível, completamente fora do ambiente do filme.

    Não quer dizer que não tenha gostado, e que não me tenham ficado algumas coisas importantes, só não consigo gostar da forma como faz as coisas...

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