quarta-feira, junho 30, 2010

O Sacrifício



Porque Offret é belo, é lindo demais, é o filme mais puro do mundo. Porque Tarkovsky foi o maior de todos, porque Offret é uma despedida de génio, um singelo adeus com uma forte consciência de fé, de esperança, uma obra-prima com todas as letras.

Offret é uma obra na qual é possível perceber o desespero de Tarkovsky pelo fim que se aproximava, o fim… a morte que o viria buscar pouco tempo depois desta obra. E O Sacrifício é um filme melancólico por isso mesmo, por essa presença da procura do cineasta em deixar o seu legado dedicando o filme ao seu filho, pela certeza no fim que chegava. Offret é isso, o reunir de toda uma obra do cineasta num único filme, num filme imponente tanto visualmente (como seria de esperar) como filosoficamente. O existencialismo num estado puro de cinema, a fé dalguns e a falta desta noutros, o sofrimento duma vida, as decisões e os erros dessa vida, a esperança. E Offret é perfeito na transposição dessa fé para o grande ecrã, na contemplação que atinge, nos longos planos-sequência que apresenta - o plano da casa a arder é simplesmente brilhante, genial, extraordinário, imponente, duma destreza magnífica; o plano inicial é outro exemplo -, no naturalismo exacerbado, na beleza das cores.

Offret vagueia pelo mundo insano do cineasta, pelas questões que, mais do que nunca, assombram a mente de Tarkovsky, pela analogia a outro grande nome do cinema que foi Ingmar Bergman (não só pela língua mas pela palavra). Porque aqui, mais do que em qualquer obra do russo, a palavra está presente, as questões existenciais, o conto moral e existencial da árvore que depois de morta volta a florescer dada a insistência, a matéria do corpo e a espiritualização da alma - e daí o sacrifício em prol, mais do que da família e daqueles que ama, da humanidade.

Offret é belo, puro, é sobretudo uma lição de como fazer cinema. Obra-prima absoluta.
(retirado daqui; do blog Preto e Branco)

segunda-feira, junho 28, 2010

Lost in Translation

Há algo de profundamente humano e terno na estreia de Sofia Coppola no Cinema, algo de enormemente indescritível. Nela, reside uma força tão contemporânea como universal que molda a obra como uma autêntica carta de amor à mundividência social deste mundo, onde nunca houve tanto toque e proximidade entre cada um de nós e onde, também, nunca houve tanta distância e solidão. Sublime obra-prima.

sábado, junho 26, 2010

A morte do cinema português

Margarida Gil, realizadora e presidente da Associação Portuguesa de Realizadores (APR), reage com preocupação aos anunciados cortes na Cultura. “Vivemos um período muito perigoso, e esta é uma estratégia de corte que vem de trás”, diz a realizadora de “O Anjo da Guarda”, fazendo notar que esta “operação de putschismo” relativamente ao cinema já vem de 2004. E acusa a ministra de falta de diálogo com os realizadores, referindo que a APR lhe apresentou um completo dossier sobre a situação do cinema português, sem que Gabriela Canavilhas tivesse depois feito qualquer eco ou mostrado “qualquer interesse” em ouvir os realizadores sobre o futuro.

Margarida Gil diz que “o cinema português está já no limiar da sobrevivência”, e envolve muita gente que se encontra “sem trabalho nem perspectivas”. Considera que, com as medidas agora anunciadas, a ministra está a “tapar os horizontes deles com a maior das friezas”. “Não pode haver um país sem cultura e com ela a ser tratada desta maneira”.

A presidente da APR acredita, no entanto, que as pessoas irão “unir-se e reagir”, e isso deverá ser mostrado já na próxima segunda-feira, dia para quer foi convocada uma reunião aberta a todos os profissionais do cinema, em Lisboa.

Também Tino Navarro, presidente da Associação de Produtores de Cinema (APC), vê os cortes anunciados como extremamente “penalizadores” da actividade cinematográfica, e por isso manifesta “muita preocupação”. Mas o produtor considera que é preciso saber em que moldes é que vai ser feita a aplicação desses cortes e restrições no domínio do cinema. É isso que a APC espera ver esclarecido numa reunião já agendada para a próxima terça-feira com o presidente do ICA - Instituto do Cinema e do Audiovisual, José Pedro Ribeiro. Só depois desse encontro, a associação irá tomar uma posição clara sobre a situação.

O realizador e produtor António Ferreira, de Coimbra, vê “sem surpresa” o anúncio dos cortes na Cultura. “Estamos em crise, não vejo por que é que a Cultura iria ser excepção”, admite o realizador de “Embargo” (filme adaptado de um livro de José Saramago, e que tem estreia nacional agendada para 30 de Setembro). “Mas eu gostava era de ouvir falar na criação de uma nova Lei do Cinema que fosse um verdadeiro modelo de sustentabilidade e de autonomia para o sector, para que ele se liberte em definitivo da subsídio-dependência”, acrescenta António Ferreira, que considera prioritário alterar também a Lei do Mecenato, para criar mecanismos que favoreçam o investimento privado no cinema, e também na Cultura em geral, que “está no limite do viável”.

A uma semana do início da 18ª edição do festival Curtas Vila do Conde, Dario Oliveira, um dos membros da direcção, diz que esta estratégia de cortes generalizados é “uma forma perversa” de resolver a crise. “Que se corte na verba de aquisições para a Colecção Berardo e em muitos outros maus negócios que o Estado vem fazendo nos últimos anos, muito bem. Mas não nas condições de trabalho dos artistas e dos agentes culturais”, diz Dario Oliveira.

O programador critica Gabriela Canavilhas por aceitar esta forma de “operacionalizar as decisões do Governo” sacrificando, uma vez mais, “de forma cega”, o sector da Cultura. Relativamente ao festival de Vila do Conde e a outros festivais do país, Dario Oliveira diz que estes cortes “são injustos” e, utilizando uma linguagem futebolística, considera-os também “uma rasteira e uma atitude de muito mau tom”, porque significam “mudar as regras a meio do jogo”, algo que “ninguém pode aceitar”. Isto significa, na sua opinião, comprometer a possibilidade de realização de muitos festivais e também de produções cinematográficas que serão cortadas, e mesmo paradas a meio.
Cada vez menos acredito no funcionamento desta política de esgoto, assassina de tudo o que é criação artística. E, ao contrário do que transponho acima, também não acredito que, verdadeiramente, vá acontecer uma revolta, na certa acepção do termo, para que tudo isto regenere, para que o cinema português encontre a sua alma, o seu caminho. Para haver revolta tem que haver revoltados. E se, típicos e previsíveis como somos, nos mantivermos nesta eterna e passiva posição de espectador, nada se verá no plano da acção - nada de nada, e só alimentaremos uma raiva interior que rasga e mutila o que nos pertence. O que é o CINEMA num PORTUGAL perdido, sem futuro nem esperança? O que será toda a cultura, detentora daquilo que pode realmente dizer algo ao ser humano, numa terra onde abundam fait divers, fátimas, futebóis e fados e escassa o gosto pela arte? Não será. O cinema português morreu há muito tempo, e vivemos frente a um cadáver que insiste em marcar presença como um fantasma que não vemos mas está ali , a querer tornar-se corpo.

sábado, junho 19, 2010

Salò ou os 120 Dias de Sodoma


Há, sem dúvida, um problema, de ordem filosófica, que se insurge, até a contemporaneidade, a respeito de Salò, ainda hoje banido em inúmeros países, levado a público logo após o assassinato do realizador: serão os trabalhos de génio aqueles que conseguem reunir o consenso global do gosto da sociedade pelos mesmos ou, por outro lado, serão os que a abalam na totalidade e a dividem até onde seria impensável? Um filme destes, que, visto em superficialidade, se demonstra nojento, repulsivo e horrível, só pode ser considerado como tal à luz da camada que se lhe sobrevém. O espectro daquele que viveu no corpo revoltado e abominado de Pier Paolo Pasolini apresenta-se e, com ele, nos traz cento e vinte dias de Sodoma e uma obra-prima que ficará nos pilares do cinema como arte autêntica.

Ambientado no regime, ditatorial e repressivo, de Mussolini, na Itália da fase terminal da Segunda Grande Guerra, a película, altamente simbólica em constituição cénica e de narrativa, subdivide-se, de forma análoga ao Inferno de Dante, em quatro segmentos – ante inferno; ciclo das manias; da merda e do sangue –, que progridem, em alucinante força, pelas experiências que quatro homens, de grande influência e poder, exercem sobre três meias dúzias de jovens, rapazes e raparigas, de desregramento, humilhação, dominação sexual e animal, diabólica tortura e morte. Efectivamente, a obra poderá ser entendida sob dois pontos de vista, um político, que subjaz toda a substância tratada nesta e, outro, sexual.

Sem qualquer tipo de dúvida, este golpe de mestria cinematográfica é, antes de tudo, um grito de intervenção – de revolta política, de alerta, de medo. Sendo um tratado sobre a fragilidade humana, Pasolini, que vivera de perto o regime fascista, rebela-se contra o absolutismo, e realiza, aqui, um trabalho de tremenda forma democrática e livre de qualquer tipo de vergonha e que critica, com energia, um mundo guiado pelo desenvolvimento da animalidade, cuja ideia de homem ideal passava pelo seu comportamento andróide, maleável e obediente, destituído de razão, sensibilidade e humanismo. Apesar de se apoiar em Nietzsche com o ultra-realismo (ou derrotismo) com que filma esta tragédia, o cineasta admite a mal interpretação que o seu Gott ist tot adquiriu neste contexto, dando a ilusão de que a perda da fé da existência de Deus poderia liberar o ser humano de qualquer tipo de atitude, incluindo o poder do homem sobre o homem, se essa fosse a sua vontade. O italiano comete, assim, um acto de pura libertinagem ao denunciá-la a ela mesma, como se fosse absolutamente necessário condenar o extremismo pelo extremismo. Não nos admirará que não só se aponte o dedo à corrupção, ao domínio individualista e ao egotismo com imagens altamente repulsivas, como também se ensaie sobre a delação em tempos de ditadura (a sequência dos escravos denunciados atraiçoarem os companheiros com facilidade é bem ilustrativa do que acabo de referir). É, aliás, nesta cena passível de ser vista como ridículo entretenimento, que, também, se identifica a alienação completa dos direitos humanos (que deveriam, a priori, ser tomados como bases implícitas de todo o nosso comportamento) nestes indivíduos que são tomados como pura carne sem alma ou raciocínio (abaixo, como encenam, de cão ou de merda): o facto de denunciarem as incorrecções dos companheiros é motivado não pelo sentido de quererem permanecer vivos mas, sim, duplamente, pelo sentido de serem privados da tortura e do castigo e de serem acompanhados numa humilhação agrupada. Porque, aqui, ficar vivo é mil vezes pior que morrer e porque, num regime autoritário, não se age correctamente para se merecer a liberdade – age-se correctamente para se merecer a possibilidade de não se ser castigado pelos supremos. Esta ideia, obviamente infernal, e paralela à circunstância behaviourista de transformar alguns dos escravos em personificações dos seus déspotas, mostra, com infeliz exactidão, o ponto a que Pasolini quer chegar com a sua poderosa alegoria política e ética: a conclusão de que os valores universais de justiça e de liberdade estarão eternamente condenados à lei do mais forte e ao triunfo do egocentrismo e do relativismo moral.

Por outro lado temos, claramente, a exploração do sexo até o impensável e das pulsões orgânicas e inconscientes do ser humano. Sem pudor, navega-se até o limite da mente de cada indivíduo, onde o bem não é o valor que vinga em última instância, mas o princípio do prazer, da mórbida e freudiana curiosidade pelo macabro, pela experiência e pela violência sadomasoquista, seja física, seja psicológica. Não obstante, este trabalho não se aproxima, nem de longe nem de perto, das produções de cariz pornográfica (que se baseiam na estimulação do observador pelo sexo reproduzido), pelo que este, o sexo, é perspectivado como forma última, não de deleite, mas de punição, degradação e primitivismo. E, apesar de Pasolini captar, com exímia atenção, a efervescência carnal dos quatro homens, repugnantes como simplesmente os podemos classificar, pelos temas mais improváveis (onde se incluem o sofrimento de outrem e a própria morte), demonstrando o carácter animal, desconhecimento e tabu do ser, o realizador revira-se, com engenhosa subtileza, para o próprio espectador, retirado com os seus invisíveis binóculos, desumanizando-o. Aqui, a pior das personagens somos nós. Afinal, por que assistimos ao filme se, em superfície, é um espectáculo zoológico de degradação e barbaridade? E que legitimidade temos de julgar as atitudes daqueles tiranos se assistimos, impotentes, a todas elas?

É precisamente aqui que reside a ferida aberta que tanto divide o mundo em relação a Salò e o último golpe de génio de Pier Paolo Pasolini: o facto de este filme, obra-prima como importa reforçar, confirmar o início de uma nova era, a do sodómico voyeurismo pela banalização e gosto da morte e da crueldade humanas.

sexta-feira, junho 18, 2010

Saramago

Hoje, morreu o que será, na maior das probabilidades, o último grande e lúcido génio da Literatura Portuguesa. E, hoje, o mundo da cultura está em profundo pesar e luto. Palavras serão insuficientes, senão escusadas, para o descrever. Mas o legado deste cá nos fica, para despertarmos, para vermos, para realmente vermos.

Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.

quinta-feira, junho 17, 2010

Intervalo

Como já devem ter reparado, este blogue não tem sido alvo de actualizações. Isso deve-se, muito simplesmente, ao facto de esta época de exames me consumir muito o tempo para estudo dos mesmos, pelo que tenho que negligenciar, obviamente, este continente e a visualização de muitos filmes, que lá me esperam. Assim sendo, fica o aviso feito e um até breve.

segunda-feira, junho 07, 2010

Onde é a casa do amigo?

Se há algo que o iraniano Abbas Kiarostami gosta de filmar e sabe perfeitamente como o fazer é captar a simplicidade do quotidiano e os dramas mundanos, pequenos mas fulcrais na progressão do ser humano enquanto entidade própria no contexto em que vive. Em Khane-ye doust kodjast?, acompanhamos um rapazito pobre cuja missão de devolver o caderno do amigo que possibilita a realização dos trabalhos de casa e que ficou com este por engano se transforma numa epopeia feliz que recheia a sua substância, motivada, por um lado, pela convicção moral de salvar o colega da expulsão ameaçada pelo professor, e, por outro, pela culpa do engano ocorrido. O ponto em comum entre ambas as motivações é a existência de uma autoridade superior, do contínuo cumprimento da ordem e da lei, formal, como é o caso da escolástica e do governo, e informal, como se trata da família. Muito embora o seu papel seja reforçado por um diálogo aqui e ali sobre o domínio intemporal dos adultos, ou os mais fortes, sobre as crianças, ou os mais fracos, preparando-os para um futuro com as similitudes do presente, convém salientar a crítica ao poder da ameaça, do despejo e do castigo sobre as acções humanas. Ainda assim, este é um interessantíssimo filme para que as crianças vejam, curto e moralizador, feliz e encantador, humanista na sua essência, belo e verdadeiro em toda a sua singeleza.

quarta-feira, junho 02, 2010

Sozinho contra Todos

O filme que precederia o genialíssimo Irreversível, realizado a partir de uma prequela de quarenta minutos (Carne), todo ele é um nada irredutível, uma grande obra que expira implacável e brutal força.

Sozinho contra todos, o protagonista, aterrorizante ex-carniceiro de cinquenta anos perdido numa França em ruínas e desemprego, com um ódio colossal a quem se lhe ponha à frente, preconiza a existência a que Nietzsche negou qualquer significado, onde se vive um tempo de forma escusado, onde a cada homem cabe a sua moral, onde a sociedade burguesa perde a sua legitimidade face à angústia, raiva, desejo de morte e de desejo animalesco do pobre, que cuida da sua vingança. Para Gaspar Noé, nada tem significado, nem o amor, nem o trabalho, nem o outro, nem a vida, que, aqui, é retratada como se o mundo fosse imundo, apenas e só, como se o homem, como é dito, se restasse numa básica linha contínua – “nascer contra a sua vontade; comer; enfiar a piça; dar vida; morrer”. E, para ele, que filma e monta em plena revolta, tendo apenas a preocupação de se afastar o mais possível do idílio e harmonia formais, tudo se resume nas tiras que faz explodir durante a longa-metragem, gritando, ao público, que VIVER É UM ACTO EGOÍSTA ainda que SOBREVIVER seja UMA QUESTÃO DE GENÉTICA. E assim é. Caberia, no mundo de Seul Contre Tous, à humanidade, limitada à sua designação (ou função?) de pecadora inata, e à sua condição de ser feita à base de carne e osso como qualquer outro animal, ter consciência da sua insignificância e rebelar-se face a tudo, a fim de exaltar a potência energética que dentro de si reside e alcançar o caos. É obviamente obrigatório ainda que o realizador francês queira decalcar a ideia de que estamos perante um filme – a imprevisível tira que surge ao espectador, vous avez trente secondes pour quitter la projection de ce film, é demonstradora disso mesmo, para além de reflectir sobre a violência, saiba-se desde já que aqui não gratuita, espalhada pelo mundo globalizado em que vivemos. 

Aliás, imprevisível é, sem sombra para dúvidas, a palavra que melhor define o estilo dilacerante da película, criando-se uma espécie de nova linguagem, sem regras, bem a condizer com o tom da narrativa que se vai contando. E, ainda que tudo seja único, há uma base que põe Noé em comum a todos os outros realizadores, tal como o seu protagonista, único mas, ao mesmo tempo, insignificante como todos os outros seres. Provavelmente, estarão ambos condenados à solidão, como todos nós.