domingo, maio 30, 2010

Cidade de Deus - análise sociológica

Mais que possível, podemos considerar urgente a análise de Cidade de Deus - realizado, em 2000, por Fernando Meirelles baseado no romance homónimo de Paulo Lins -, um precioso objecto sociológico na medida em que retrata, com exímia factualidade, a realidade social vivida nas favelas do Brasil, como será comprovado de seguida, a partir de uma curiosidade sociológica sem dúvida importante. O filme é, por si só e apesar da ficção que se monta, uma espécie de análise documental das múltiplas tramas que se entrecruzam naquele fatídico local.

Situamo-nos em Cidade de Deus dos anos 60 – uma favela carioca situada a oeste do Rio de Janeiro construída poucos anos antes da altura com que iniciamos a primeira linha temporal no filme. O nosso protagonista, Buscapé, inicia um monólogo descrevendo a cultura carioca e de favela onde está inserido. Nestas circunstâncias, reparamos com facilidade como esta é apreendida pelos habitantes, tal como é partilhada entre eles, concretizando por fim um dado modo de vida, que determinará como consequência as formas de pensar, agir e sentir da população de Cidade de Deus. 

É-nos primeiramente mostrado um campo de futebol onde ocorre a interacção social (com a linguagem, etc.) entre dois tipos diferentes de pessoas, com faixas etárias igualmente distintas: Buscapé e os seus colegas, incluindo o Dadinho (futuro Zé Pequeno) e Bené; e Cabeleira e Marreco. Podemos induzir que as crianças os tomam como modelos e representações sociais a serem seguidos, avaliando pela altivez que inspiram e a segurança, ou seja, os comportamentos decorrentes da socialização com todos os valores envolventes. Este caso voltar-se-ia a reparar quando Bené atenta no estilo de vida, vestuário e penteado de Cenoura, tentanto a custo imitá-lo de forma a integrar-se no núcleo de amizade deste, moldando uma identidade colectiva.

No entanto, a representação social do bandido (que, por sua vez, é produtor de um estigma futuro) e o grupo de referência remete-nos a uma facção social menosprezada e reprovável: a dos bandidos, enfim, a dos que ganham a vida “não fazendo nada”, ou assaltando, como é o caso (visto que assaltam um camião de gás e, depois, um motel). Buscapé, que nem imaginaria de certo como Dadinho se tornaria vil no futuro, di-lo com firmeza no início quando ele lhe tira a bola: “Dadinho, por exemplo, parecia que já tinha nascido bandido”. Nesta frase do personagem, remetemo-nos, dispostas as coisas deste modo, para a consideração de que havia no grupo de crianças uma socialização formal praticamente ineficiente (visto que a escola, se presente, constituía uma nula referência, excepto mais tarde, nos anos 80, onde Buscapé serve-se da escola para conhecer colegas que seriam marcantes na sua vida e história pessoais), uma socialização informal engrandecida de forma extremamente negativa e uma anomia social evidente, reflectindo-se, mais tarde, nos comportamentos. A socialização primária, feita pela família (que em todo o caso mostrava um modelo monogâmico), por que passaram as crianças não é motivadora de uma secundária positiva – já que os modelos parentais existentes não são dos melhores. Tomamos como exemplo os pais de Buscapé: se, a este, transmitiam as mais básicas normas, valores e regras sociais, fazendo-o aprendê-las, imitá-las e identifcar-se com eles, ao seu irmão já não o conseguiam influenciar mais, visto que este, tendo em conta a socialização secundária realizada com os seus grupos de colegas e de amigos foi, por oposição, negativa.Há uma geral ausência de valores, certo é que relativos ao espaço.

Na Cidade de Deus, constatamos a existência de uma maioria étnica, que potencialmente suscitaria reacções racistas, como é o caso de Zé Pequeno face à presença do Cenoura, referindo-se a este não poucas vezes como “branquelo”. Esta liberdade de difusão do preconceito e da forma como actua o pensamento individual leva-nos a crer, ainda que de forma errónea, que existe apenas, na favela, “bastidores” nos espaços sociais, na medida em que há uma convivialidade extremamente informal. No entanto, e se tivermos em conta a traição amorosa feita pelo irmão de Buscapé (que acabaria no assassínio da mulher pelo marido – representativo das desigualdades a que eram sujeitados os habitantes de sexo feminino e da violência doméstica, ou seja, distinções de sexo e género) e se tivermos em conta a criação das duas tribos rivais no domínio prático do bairro e a subconsequente infiltração de traidores, chegamos á conclusão de que existem também as chamadas “fachadas”, com o culto pela aparência e o recalcamento de certos comportamentos, tendo em vista o disfarce e o controlo social.

Tal se sucede, também, pela tentativa de alcançar um estatuto social desejável. No caso de Zé Pequeno, podemos considerar que as suas expectativas e desejos de se tornar um certo tipo de pessoa no futuro foram cumpridas. Assim, podemos dizer que se, inicialmente, Zé Pequeno tinha um estatuto inato, pois não tinha controlado o meio desfavorecido que nascera, este também alcançou o estatuto de realização, pois esforçou-se em adquirir um determinado modo de vida. Chegado a “líder” da Cidade de Deus, com acesso gratuito a qualquer tipo de armamento, Zé Pequeno acaba por reproduzir um certo arquétipo de vivência social, isto é, limites na actuação dos habitantes, obrigando a que estes tomassem certas condutas, posturas e linguagens tendo em visto a “tribo” que defendiam. Assim, registamos um controlo social informal, exercido através de sanções negativas não escritas, mais eficazes e, sem sombra para incertezas, mais trágicas e implacáveis (neste caso preciso, a morte de quem não viesse de encontro com as normas pressupostas). Assim se mantinha a ordem social, tendo em conta a durabilidade e a imposição de uma ou outra tribo, lutando cada uma pelo alcance de uma mudança social a fim de se transformar as estruturas básicas de Cidade de Deus. 

Apesar de rivais, podemos distinguir este grupo social de líderes e habitantes da favela com outro grupo social, o núcleo de jornalistas para onde Buscapé acabará por ser empregado. Eram estruturados, promoviam e partilhavam interesses, objectivos e valores comuns, exerciam um certo controlo social e eram, sem dúvida alguma, distintos e distintitivos. Havia, pois, uma inegável consciência colectiva e de pertença. Caberia a Buscapé decidir por qual dos grupos sociais queria este enveredar. Óbvio torna-se a sua escolha pelo grupo de referência dos jornalistas, e não o de pertença dos habitantes de Cidade de Deus.

Esta decisão mostra bem as desigualdades sociais vividas no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. Quem vive numa favela pertence, claramente, a uma classe claramente desfavorecida e baixo, tendo que suportar a ausência de recursos essenciais, como o gás (tome-se como exemplo o assalto ao camião no início do filme) fruto de uma pobreza em termos de capital econónimo que, por consequência, leva a baixos capitais social, cultural e simbólico. Tal não significa que não posso ocorrer uma mobilidade social ascendente. Aliás, tal acontece com Zé Pequeno e Bené, ou Buscapé, de forma intrageracional.

Este negro quadro levará à observação directa da última consequência: a pobreza absoluta, agarrada, diversas vezes, ao chamado “pensamento mágico”, e a exclusão social materializada na criação da favela, ao sentimento subjectivo de insegurança na vivência, e a um círculo vicioso de miséria. O termo, por si só, faz-nos pensar num “gueto” onde residem as piores pessoas, criminosos, desempregados, e pessoas que não se esforçam para melhorar as suas vidas.

O filme é obviamente brutal na passagem da sua mensagem, mas Fernando Meirelles conseguiu suscitar a nível nacional, no seu país, um debate intensivo na política de ordenamento de território e organização das favelas. De facto, registou-se um melhoramento na vida da população, no sentido de haver mais segurança policial e uma melhoria das condições. No entanto, podemos considerar que foi preciso um filme baseado em histórias reais com visibilidade internacional para que fossem enfim tomadas medidas, ainda que haja muito por fazer, no Brasil e no resto do mundo, para combater estas desigualdades sociais. Como foi referido, “Cidade de Deus” é precioso como objecto de estudo sociológico, urgente para quem quer tomar consciência do estado do mundo que lhe rodeia e para suscitar a ideia de responsabilidade e fraternidade colectivas.

segunda-feira, maio 17, 2010

Muito bem,

Cavaco. Fez o que tinha a fazer.

domingo, maio 16, 2010

Solaris

Que há para além de nós, do contínuo espácio-temporal que prende cada ser humano à sua residência terrestre? Tarkovsky, com Solaris, a sua primeira aventura pela ficção científica, não ousa sequer responder a isto porquanto, tal como as personagens criadas, se apercebe da aparência presente na factualidade e segurança que julgamos ter da nossa existência e do nosso conhecimento concreto das coisas, acabando então por o rejeitar com veemência, assim como a curiosidade mórbida que nos afunda o pensamento.

Interessa ao mestre russo explorar, numa primeira fase, o sentimento do homem de ambição desmedida de alcançar e conquistar o espaço sideral e o grande e escusado salto que este pretende fazer à mascarada ignorância do mistério que é a sua essência vital, levando os cientistas astronautas a se depararem com o angustiante e imenso vazio que há no universo. Numa segunda fase, já aceite, com a acalmia e anti-positivismo necessários, a consideração de que não há possibilidade de saber muito mais, são tratadas as já conhecidas ideias que defendem o urgente recasamento do homem com a Natureza e a procura tranquila e pessoal da alma e dos verdadeiros desejos lá residentes (algo que dará mais ênfase no subsequente Stalker). Estão, por outro lado, bem salientes as considerações sobre a real e absurda postura do protagonista, representante da contemporânea humanidade, perante a mortalidade e o amor – é de forma implacável e cruel que este é posto ante a (im)possibilidade de a morte de alguém querido regredir, neste caso a da mulher que tragicamente perdeu na Terra. Nesta circunstância, fantasiosa e quase que disparatada, o cineasta, escondido atrás da divina e paradoxal transparência opaca do Oceano, estuda a reacção que temos quando nos encontramos frente ao desconhecido e ao que não é logicamente explicado pelo saber adquirido, investigando, de igual maneira, a forma como erradamente racionalizamos os sentimentos (o amor, particularmente) e como essa teorização alimenta a nossa zona de conforto interior. Assim sendo, chegamos a duas concludentes e cruas reflexões – a que sustenta a vivência dos momentos como algo de percepcionado e sentido intersubjectiva e intimamente, ainda que estes sejam colectivamente partilhados, e a que defende o conhecimento (da existência, da identidade, do amor, do espírito e do mundo) alcançado apenas por via da libertação do considerado não-conhecimento (científico, rígido e “universal”). Apresentadas estas conclusões, que são, como seria de esperar, recusadas e ridicularizadas pelos restantes figuras intervenientes nesta parábola, são tratadas, por fim, a incomunicabilidade moderna da humanidade (apresentada, de forma mais edificativa, pela longa sequência do trânsito no Japão, captando, com angustiante sensibilidade, as estradas e vidas que se entrecruzam de forma mecânica) e a moralidade que é, desacertadamente, imposta em cada sociedade. Tarkovsky, partindo do vislumbre dos “Caçadores na Neve” de Bruegel e da transposição para a actualidade, e partindo da firme convicção de que, no futuro, o homem se encontrará perdido no sentimento de vergonha (tal como é dito na obra), preconiza a utopia de uma nova sociedade – a que será construída, após um empenho deste em se descobrir e aceitar, baseada numa plena interacção harmoniosa com a floresta e com o outro, e no generalizado, fraterno e vivido (não racionalizado) sentimento de amor.

Solaris é, sem sombra para dúvidas, uma obra-prima do cinema e das melhores do autor, sublime na sua estrutura formal e na forma como se é servido desta para atingir o transcendente, misteriosa na sua essência, como afinal o é a própria imensidão do universo e da nossa alma.

quarta-feira, maio 12, 2010

Arte & Deus

Na tentativa (escusada, já se viu) de não escrever nada a respeito da visita papal ao nosso minúsculo país, foram hoje realizadas, após a sua estadia e discurso no Centro Cultural de Belém, como podemos observar na fotografia de cima, perante centenas de reconhecidos artistas e intelectuais portugueses, algumas reflexões sobre a relação da Arte com Deus (esclareça-se: o todo-poderoso preconizado pela Bíblia), como esta aqui: E se a arte voltasse a aceitar Deus? O nosso Manoel de Oliveira não hesitou em afirmar, a título de exemplo, que os tipos de arte, como o cinema, estão “intimamente voltados para o homem e o universo, para a condição humana e a natureza Divina” (isto num contexto de discurso cristão, como ele frontalmente o assumiu). Nas restantes intervenções, incluindo na exercida pelo santo padre, podemos com facilidade encontrar dois pontos de encontro: o assumir de um divórcio entre a Igreja e a Arte (e, por conseguinte, a urgência de as voltar a unir), e de uma aparentemente necessária relação entre ambas, como se a verdadeira expressão artística tivesse sempre que envolver um lado com Deus (como a imagem cristológica que Tarkovsky procurara, quando vivo, nas suas obras). Será, portanto, no mínimo lógico julgarmos um filme crítico da religião e ateu como anti-filme, anti-cinema, anti-artístico – e então entramos no universo supostamente idílico, o da rejeição que presenciamos tão bem até o século XIX (com todas as perseguições, etc.). Há aqui toda uma enjoativa contradição que se prende, única e exclusivamente, na minha perspectiva, aos dogmas, também eles nauseabundos e paradoxais, que a Igreja Católica patrocina, sufocada nos seus próprios pecados, se esse é o termo que usam ainda, sufocada numa arte do passado, procurando na contemporaneidade a falsa salvação do abismo que tem caído nas últimas décadas. Essa contradição, se ignorada, poderá cair sob a ideia, poderosa e perfeitamente plausível, de que a arte, como o cinema, deverá procurar a cerne da condição do criador e da sua alma, reflexiva de uma humanidade que terá, isso sim com urgência, de deixar de procurar resposta e comodismo numa exterior e superintendente invenção que, no final de contas, é a sua mais misteriosa criação.

terça-feira, maio 11, 2010

Persona

Há dias, sobretudo nos que vão merecendo uma profunda introspecção, que me lembro da existência de um filme que, seguramente, se enquadra naquele género de obras que são capazes de mudar vidas, consciências e, como feliz e última consequência, identidades. É, pois, sobretudo sobre isso que discorre este magnífico, magnífico Persona, uma reflexão psicanalítica, única e imbatível sobre a individualidade do ser humano e a sua afirmação no meio social, a explosão do ego revoltado, o caminhar para um inconsciente recôndito e assombrado pelos fantasmas das mais essenciais questões da vida. Para além do mais (e para dizer algo que será sempre pouco para uma análise, posterior, pessoal e profunda, sobre a fita), é um tratado sobre a aparência versus realidade, a fusão de personagens e todo um universo bergmaniano verdadeiramente solipsista (apesar desta ideia estar implícita em vários momentos, sobretudo nos finais), dando a impressão, chocante e misteriosa, que tudo o que acabamos de ver não foi obra do mestre sueco, foi obra dos nossos sentidos, da nossa experiência pessoal e memória – que é, em última instância, aquilo que nos torna EU. Há, assim e de forma imprevisível, uma reviravolta que (con)funde o espectador como o actor, denunciando a persona que não o faz ser EU, mas fá-lo ser o falso mundo que o rodeia. Onde está, então, a nossa verdadeira existência, a pedra basilar da nossa alma? Neste experimento cinematográfico (do melhor que o cinema foi vendo em toda a sua história), verdadeiramente libertador (a qualquer nível, seja formal, narrativo...), a identidade não dá lugar para o colectivo – porque nós somos para nós, nós somos o universo que criamos, nós somos os falsos actores da peça de teatro, eterna e dilacerante, que Ingmar Bergman concebeu para atingir a totalidade do seu próprio EU, fugindo da sua persona com um magistral golpe de génio.

segunda-feira, maio 10, 2010

Nota de despedida (Rúben)

Quando se fala em "O Sétimo Continente", surgem-nos no pensamento os textos do Flávio, sinceras expressões do seu apreço pelo cinema, e da vontade de o compreender. Os méritos do blog são os méritos dele, os elogios que se tecem a este espaço nenhuma outra pessoa os merece. A boa escrita dele cativou leitores, o seu empenho e dedicação fizeram com que regressassem continuamente.
As minhas contribuições pouco mais foram que breves didascálias, e por me terem permitido partilhá-las estou grato ao Flávio e ao blog. Saio, porque devido a razões pessoais, não sinto necessidade de aqui continuar como colaborador. Não obstante isso, faço um balanço positivo da minha passagem por aqui, e este post não anuncia uma desistência - por cá permanecerei, apenas dando um passo atrás e ostentando a designação de visitante (nunca fui nada além disso, verdadeiramente). Porque "O Sétimo Continente" nunca foi uma viagem entre as três pessoas que o decidiram criar, mas entre todos os que o frequentam, penso que o Flávio não tem por que se sentir desencorajado. Um bem-haja a todos, e um grato reconhecimento do feedback que fui recebendo.

sexta-feira, maio 07, 2010

Três Cores: Vermelho

O último capítulo da trilogia das cores de Kieślowski é, de facto, uma inegável obra-prima. Uma reflexão duplamente essencialista e existencialista sobre a comunicação humana, fonte da sua própria condição, uma que conclui perpetuando uma natural e intrínseca bondade no ser humano (associada à fraternidade) ou, pelo menos, daqueles que, aparentemente, assim o merecem ou se encontram resignados a um certo determinismo cósmico, divino e supremo. Deverá, por isso, ser a mais significativa em profundidade espiritual, captando não só a essência das personagens com quem acompanha como do meio envolvente, tornando as imagens de cada plano supremamente necessárias, como se cada objecto, som, acontecimento, etc., no seu preciso local de pertença, acarretasse todo um futuro inevitável (e, neste caso, feliz, refulgente, chocante para um espectador que toma a condição de deus). Assim, tudo o que classicamente se depreende imprescindível no cinema da representação da realidade se encontra reconfigurado no do polaco, que, orquestrando o universo francês com o auxílio de génio de Zbigniew Preisner e de uma simbologia cromática e filosófica do mais perspicaz, imortaliza uma vontade de tudo contemplar – não seríamos nada sem o meio, sem as almas que nos envolvem e constroem. Seríamos um vazio que aqui, simplesmente, se mostra inadmissível. Uma vez mais: obra-prima, que terá (e a pouco custo) de ser revista inúmeras vezes. Assim ela o merecerá, certamente.

quinta-feira, maio 06, 2010

'Tarkovsky ou o ícone do cinematógrafo'

“É interessante virarmo-nos para uma outra Rússia, como aval dessa época em que a liberdade alimentava a esperança de um mundo novo. Tarkovsky exprime-se quando a Rússia atravessou o século, sufocada por um regime totalitário assassino dos corpos – o que ainda se pode contabilizar – mas também das almas, inumeráveis essas, de todos aqueles que sobreviveram à catástrofe antropológica maior que esse regime provocou. Uma vez que essa humanidade «nova» perde qualquer referência (Stalker), Tarkovsky voltou-se para o passado para aí ir buscar a seiva de um Renascimento possível. Não devemos, portanto, admirar-nos por o ver explorar o mundo dos pintores de ícones (Andreï Rublev) ou exprimir a sua nostalgia de um mundo habitado pelas memórias do sentido (Nostalgia).

1 - «O Artista exprime a verdade através da figura da realidade»

«Acontece muitas vezes que, estando tudo perdido, tudo é para voltar a fazer», dizia Baudelaire. Tarkovsky não se compraz na contemplação do mundo arruinado, que, no entanto, dá a ver com um génio moderno em Stalker: a sua nostalgia impele-o a reconstruir, pondo o dedo nas fissuras mais perigosas antes de arrasar aquilo que ainda corre o risco de desabar. Porque, se é certo que é preciso reconstruir, é preciso voltar a partir das fundações do edifício em ruínas. E por isso que ele é o cineasta das raízes: da infância (A Infância de Ivan, O Espelho), do país natal (Nostalgia), da Terra (Solaris), do «Céu» metafísico no fundo (todos os seus filmes). Ele é também o cineasta do desenraizamento: do arrancamento temporal à infância, do exílio, da viagem, do esquecimento metafísico. Por fim, é o cineasta do lembrar a necessidade da memória dessas raízes, lutando contra o esquecimento, a ocultação ou a negação, o recalcamento, a distracção. A sua démarche foi, no princípio, de protesto contra a história (o inferno de A Infância de Ivan, o inferno das invasões bárbaras no coração da Idade Média, onde, no entanto, trabalhava a emergência de uma exigência de salvação: Andrei Rublev). A seguir, ela foi a atestação da possibilidade reivindicada para a nossa época dessa mesma emergência (Stalker) porque, se o tempo da história é o tempo infernal da queda, temos de nos levantar até uma inteligência metahistórica do real, redescobrir os valores éticos e espirituais fundamentais, para voltar a agarrar o leme de uma história quem seja mais digna do homem.

Por fim, a sua obra põe em evidência um método: o de toda a vontade de inteligência de si próprio, individual e colectivo, o do regresso às origens, para reencontrar o caminho, depois te ter errado. «Sabemos tão pouco das coisas da alma, somos como cães perdidos» (Le Monde, 12 de Maio de 1983, «Le noir coloris de la nostalgie»). As suas intuições, no fundo, fazem ressurgir a ideia de um parentesco profundo entre o bem e o belo: «Parece-me que o objectivo da arte é preparar o espírito humano para perceber o bem» (Positif, n.º 247, Out. de 1981). A verdade encontra-se tanto no bem como no belo: «O artista exprime a Verdade através da figura da realidade». Também o artista deve dirigir um olhar puro sobre a realidade, o olhar do primeiro dia, como Leonardo da Vinci ou Johann Sebastian Bach («De la figure cinématographique», in Positif, n.º 249, Dez. de 1981). Então, a obra de arte faz-se, na sua própria materialidade, ícone do espírito.

2 - «A arte icónica e eidética»
2.1. A imagem como metáfora e ícone do cinematógrafo


«A metáfora é a imagem», dizia Tarkovsky na sua entrevista com Hervé Guibert, no Le Monde de 12 de Maio de 1983 («Le noir coloris de la nostalgie»). E como «a imagem possui as mesmas características que o mundo que ela representa», a metáfora, tal como Tarkovsky a concebe, é aquilo que ele também denomina a figura. É o ícone do cinematógrafo. A montagem é completamente secundária para ele: «A figura cinematográfica cria-se durante a rodagem e só existe no interior do plano» (ibid.). Tarkovsky, como Eisenstein, do qual, no entanto, não partilhava as ideias relativas à montagem, interessa-se pelo haïkaï ou kaïku, terceto japonês com 17 monossílabos (5-7-5), normalmente introduzido e realçado por um haïbu ou prosa poética. Seguem-se três exemplos de haïku de Bashô, sendo o terceiro apresentado como exemplo pelo próprio Tarkovsky (Positif, n.º 249).

Noite de Primavera:             | Secado o ramo;           | As canas são cortadas pelo telhado
As cerejeiras! Às cerejeiras | Pousado o cesto;         | Nas hastes esquecida
Chegou a aurora                 | Crepúsculo de Outono | Cai uma nevezinha ligeira

O kaïku, observa Tarkovsky, é um exercício espiritual que convida à meditação: por meio do mais objectivo e do mais concreto, atinge o subjectivo e o indizível; por meio dos dados mais modestos da vida quotidiana submetidos a uma intensa concentração do olhar meditativo, ele atinge o ilimitado. Despido de qualquer sentido «final» imediato, o haïkaï exige do leitor uma contemplação criadora de uma profundidade, uma comunicação intuitiva, rica de verdades sensíveis à alma sem mediação do intelecto. Os poetas zen mostram também o caminho, diz Tarkovsky: «Eles trabalham para eliminar a interpretação» (Positif, n.º 249, Dezembro de 1981). Trabalham também para transcender a emoção porque «a emotividade não tem nada a ver com a verdadeira espiritualidade» (Le Monde, 12 de Maio de 1983). Nos seus filmes, a contemplação silenciosa assume habitualmente a forma de um quadro: naturezas mortas, ou melhor, «vidas silenciosas», objectos inscritos como sinais obscuros na materialidade do mundo. Interrogado sobre o papel da água, considerável na sua obra, Tarkovsky responde: «Abordámos esses problemas como pintores» (Positif, n.º 247, Outubro de 1981). «Para mim, o que conta», diz ele noutro sítio, «é a imagem e, sobretudo, a luz. Sou a favor de um cinema que utilize poucas palavras» (Le Film français, Ed. do Festival de Cannes, 15 de Maio de 1983). Essa imagem que fala sem palavras, sobretudo através da luz, que arranca quem a olha à imediatidade glauca e desesperante do mundo totalitário (Stalker) qualifica Tarkovsky como pintor de ícones.

2.2. Sentido literal, sentido alegórico e sentido espiritual da imagem


Se quisermos entregar-nos a um exercício de iconologia a partir da iconografia de Tarkovsky, é filosoficamente fecundo partir de Nostalgia por causa da sua tonalidade platónica. Com efeito, trata-se do exílio e do mal específico que caracteriza o estado de afastamento do país natal, aquele onde temos raízes e cuja seiva alimenta a vida,  a tal ponto que, quando estamos totalmente cortados dele, morremos. É, pois, a história de uma doença de langor, acompanhada de um desejo ambivalente e, por consequência, doloroso, do regresso. É a pena melancólica de um período passado, mas também a esperança de ver efectuar-se o regresso ao lugar de onde procedemos. Ora, se Nostalgia nos conta, no primeiro grau, a história de um homem efectivamente exilado (acontecimento autobiográfico tardio), em viagem que se pode marcar no mapa, no espaço da geografia crítica real, realista (Rússia, Itália), é preciso, evidentemente, na exegese desta Ilíada, ultrapassar o sentido literal para encontrar, através da espessura alegórica, o sentido espiritual: o de um Itinerário do Espírito em direcção a Deus, segundo a expressão de São Boaventura, uma tentativa de Odisseia.

A técnica da linguagem utilizada, que entrança os três níveis de sentido (literal, alegórico, espiritual), magistralmente elucidados por Orígenes e depois por toda a tradição medieval, faz com que Tarkovsky reate, em Nostalgia, com a veia de inspiração explorada em Andrei Rublev, evocada igualmente como reminiscência de um mundo passado e em ruínas, em Stalker («na Idade Média, Deus estava em todo lado, em cada casa»). É que o sentido literal é o ícone do sentido espiritual: o aspecto manifesto da trama sensível da narração remete para o conteúdo latente sugerido por ele, isto é, para o sentido espiritual, inteligível. O espiritual puro é obrigado, para se exprimir, a ir buscar o esquema da imaginação de dar a ver o invisível. Mas cabe ao espectador atravessar a figura sensível para a transfigurar e adivinhar a origem de onde ela procede. Em Nostalgia, Tarkovsky ilustra a impotência actual da maioria para operar essa travessia através da personagem boticelliana de Eugenia, a tradutora de Gortchakov: Eugenia é a própria Vénus saída das águas e é o seu excesso de beleza sensível – não acompanhado da sua interiorização – a quem Gortchakov tem a força de voltar ostensivamente as costas, recusando-se literalmente à sua sedução. Essa beleza sensível só por ela é estéril, beleza da superfície das coisas privada da profundidade que as enraíza nas estranhas do Ser que as dá à luz. Deste modo, à Vénus moderna que tem as feições da de Boticelli, Tarkovsky prefere a veneração da Virgem paradoxalmente fonte de toda a fecundidade (cf. a visita à Madona del Parto, de Piero della Francesca que, na ausência de Gortchakov, permite o confronto de dois tipos de feminilidade, de dois tipos de abordagem da Vida, indo a preferência para o fervor das mulheres humildes que rezam para obter o filho que não podem ter, cena que fecha com os pássaros a levantarem voo do seio da Madona de procissão). Esta cena também permite compreender a diferença de estatuto e de função da imagem para a turista e para as mulheres que oram. Para Eugenia, a imagem é «letra morta», beleza não ordenada no sentido que a atravessa; é com essa superficialidade do voyeurismo turístico que Gortchakov rompe quando diz: «Estou farto dessas belezas fastidiosas», recusando-se a entrar no santuário. Para as mulheres que oram, a imagem é vector espiritual. Há, portanto, neste filme uma reflexão sobre a imagem que reconduz, aprofunda a reflexão iniciada no seu segundo filme Andrei Rublev. O ícone é a referência central deste cineasta Russo que cresceu no domínio ortodoxo da expressão do mistério cristão, tanto mais intrigante (no sentido próprio do termo) quanto estava tocada de ostracismo recalcado pela cultura oficial incapaz, no entanto, de destruir os seus preciosos vestígios relegados para o museu…

2.3. Função psicagógica do cinema: despertar a alma


A arte não se justifica senão pela sua função psicagógica, função de despertar a alma. Ela não tem de reproduzir a aparência, mas tornar visível o invisível. Ela desempenha a função de ícone e, como ícone, ela é epifania. Mas, em vez de fazer a forma desaparecer, como nos ícones abstractos de Malevitch, Tarkovsky restaura-a dando a ver a Forma, o eidos das formas: a alma. Nesta arte icónica e eidética, trata-se da nossa essência: a alma, a qual é indissociável da incarnação e do caminhar da existência no tempo. Andrei Rublev conta um itinerário iniciático, no espaço e no tempo, que, na sua progressão temporal, é regressão em direcção ao fundamento: o alfa e o ómega de toda a realidade, a Sabedoria eterna do Deus escondido. Vemos evoluir Teófane, o Grego, que cita Epifânio, o Filósofo, Andrei Rublev, Daniel, o Negro, que fizeram todos escola, transmitiram uma tradição cuja prática e sentido são eles próprios herdados do platonismo. Ao nível deste seu segundo filme, a referência histórica é já referência metafísica por intermédio da teologia que serve de base à prática da pintura de ícones. Poder-se-ia dizer que, nesses homens que se procuram, é feita referência à cultura da imagem para responder à exigência do entendimento: Tarkovsky inclina-se diante do ícone, sonda-o e interroga-o para compreender aquilo de que ele é o espelho, porque, na opacidade deste mundo, ele é como o vestígio, a marca, a memória de um saber perdido. Qual é, pois, a lisibilidade da imagem trazida pelo visível?

2.4. O ícone como imitação da transfiguração

João Damasceno (séc. VIII), autor de Três Discursos sobre as Imagens, escreve: «Visto que o Invisível, tendo-se revestido da carne, apareceu visível, tu podes figurar a semelhança daquele que se fez Teofania» (cf. J. Damasceno, Le Visage de l’invisible, Migne, 1994). O fundamento do ícone é, pois, cristológico. Dizer que Deus se fez homem é o equivalente absoluto de dizer: Deus fez-se imagem, houve advento da divindade no visível a fim de que os homens vejam. Há redenção ao nível da imagem que visualiza sob os traços da humanidade a processão da segunda hipóstase cristã, o Filho. Ora, o ícone é imagem da Imagem que o Filho, nele próprio, já é. Ele torna presente Aquele que dá presença sensível ao Deus que se ausenta e se subtrai aos olhares na sua transcendência radical. Ele é, portanto, mediador e mimético, mas não é consubstancial àquele que ele imita: é apenas uma placa de madeira, um fundo, uma qualquer matéria sobre a qual deve ser representada a Imagem transfigurada. A verdadeira mimética icónica consiste, pois, na imitação da transfiguração. Trata-se, portanto, de dar a ver, por intermédio da matéria-prima da arte, uma matéria aliviada do seu peso, uma matéria em glória. O ícone é esse espaço onde o espiritual se torna sensível, onde nos é dado a ver, através da imagem de Cristo, o próprio olhar de Deus, na modalidade da humanidade visível. É esse estatuto do ícone como símbolo no sentido de indício, de índice do vestígio deixado pelo ausente fascina Tarkovsky, pintor da ausência de Deus no nosso mundo moderno. Porque indicar a ausência é permitir querer suscitar de novo a presença, para que da imagem obscurecida do mundo possa voltar a brotar a luz. É precisamente o que acontece no fim de Andrei Rublev. A saída da prova que cobre todo o filme, rodado a preto e branco, faz-se na luz da Transfiguração: o ecrã ganha cor dando-nos os fragmentos sumptuosos de uma obra que canta a glória dos Céus e o Ícone de Trindade – os três anjos sentados á mesa de Abraão – está lá para lembrar que Deus é Vida, Unidade trina, isto é, relação, de onde o jogo dos olhares no interior dessa esfera perfeita e a abertura para o quarto lugar: o lugar do espectador está aberto; o espectador é comprometido, implicado, porque a perfeição divina não exclui o imperfeito que nós somos: o terrestre tem o seu lugar nessa esfera celeste. É preciso ainda que tenha a nostalgia suficiente que lhe dará o poder do seu levantar voo.

Ora, o homem do fim deste século de provações sem igual, surdo aos símbolos (sumbolon), seduzido pelas potências enganadoras (diabolon) já não sabe que só no Espírito pode encontrar o seu verdadeiro rosto, que, para encontrar, tem de procurar. Para se voltar a lembrar, tem de ter consciência do esquecimento. E aquilo que Tarkovsky põe a nu é precisamente o esquecimento do esquecimento, a satisfação completa da «alma» moderna, alma caída, privada de asas. Tarkovsky é um cineasta da queda (Stalker) – conceito ético e espiritual mais pesado do que o conceito puramente temporal, histórico de decadência. Por intermédio do platonismo ou do neoplatonismo, subjacente à teoria da imagem, Tarkovsky reactiva um pensamento essencialista, isto é, normativo: a existência tem vocação de incarnar a essência e o sentido que deve orientar a vida é a descoberta da inteligência da nossa essência. Esta é a Via, o caminho, guiada cada vez mais em Tarkovsky, pela Verdade de que o ícone está impregnado. Do fundo das profundezas da cloaca ética de cores sombrias e sórdidas exploradas por Stalker, que é, sem dúvida, a obra-prima do cinema decididamente moderno na forma, subiu o clamor da sua arte que é interrogatório, tacteio, método cada vez mais explícito para encontrar a Via, sabendo que, fora de uma relação vivificante com o Ser, só existe caos e desespero. Muito curiosamente, Tarkovsky está muito perto de Malevitch, com a diferença que a sua tendência para o teocentrismo não abole a figura, mas constitui uma reivindicação firme de regresse às origens para reconfigurar o espaço humano e restaurar-lhe o rosto desfigurado. Deste modo, ele pratica uma arte onde o absoluto nunca é mostrado mas indicado como fundo. A ausência de Deus permite restituir o espiritual como presença, sendo a alma apresentada como reflexo de uma realidade transcendental. Assim, nele, a relação com o ícone como emblema da memória ontológica faz referência a uma experiência da kenose, mas esse vazio não é uma falta, é uma plenitude.

3 - «Escultura com o tempo como matéria, eis o que é a figura cinematográfica»

Se o ícone transmuta o espiritual de natureza qualitativa em espaço físico, Tarkovsky, esse, transmuta-o em temporalidade. «No cinema, a essência da criação é uma escultura no tempo», dizia ele. Esculpir o tempo é esculpir o real na sua duração. «O tempo fixado na película adquire a forma visível do real» ou, de modo inverso, a imagem, na incarnação física das suas formas, manifesta o tempo vivo como material: «escultura com o tempo como material, eis o que é a figura cinematográfica» («De la figure cinématographique», Positf, n.º 249). Um filme é feito de tempo, esculpido é certo, mas, primeiro que tudo, concreto, de estases temporais maciças, longas, visíveis. «Podemos imaginar um filme sem actores, sem música, sem cenário e sem montagem, apenas com a sensação do tempo que se escoa no plano. E esse seria o verdadeiro cinema.» (ibid.) Essa temporalidade é o ícone móvel da eternidade imóvel. Há aí um jogo sério, uma démarche de paciência que, no caminhar, no peregrinar do tempo, pode juntar elementos dispersos e em ruínas e balbuciar a reminiscência do eterno. Tarkovsky situa-se na perspectiva da nossa relação com a força única que funda o universo e no estado de queda que geralmente fragmenta a unidade profunda do real: trata-se de restaurar o ícone desfigurado, de reencontrar a sua harmonia perdida no tumulto com os bocados, os despojos e as colagens que com eles podemos fazer. Esta obra põe em cena, portanto, essa dialéctica eterna do rasgamento da consciência – que é a própria condição humana – que sabe que a pureza passa pela falta que ela condena. Só encontramos procurando e arriscando-nos. Existe em Tarkovsky uma visão do ser como acto e não como preguiça passiva e consumidora. As vias abertas ao homem, à criação e ao amor, alienam-se frequentemente; é preciso cultivar a atenção vigilante, ser sentinela de si próprio. Então, sob o clamor que sobe de uma humanidade não realizado por condição mas de que a alma é enteléquia e abre caminho a um sentido."

A ARTE, cap. X, de FRANCE FARAGO
Porto Editora, 2002

terça-feira, maio 04, 2010

Brokeback Mountain

Perpetua-se, na montanha de Brokeback, uma criação clandestina, de proporcionais dimensões à verde geografia daquele espaço – a naturalidade do mais prezado sentimento do ser humano e a condenação milenar da componente mais sacrificada por este. Em Brokeback, a fronteira entre o aprovável e a realidade é ténue – tão ténue que se acaba por figurar mortal. Vivem-se os tempos do ódio, da intolerância e incompreensão. Mas que importam os tempos do homem se a montanha, a natureza e o amor permanecem imutáveis e espectadores de um devir secundário? Não importam, claro. Daí se acaba por justificar a mestria com que Lee filma a leveza e importância de cada gesto e olhar, a contraposição entre o meio social, corrompido, horrível e insanável, e o meio orgânico, belo, transcendente e seguro, o amor numa particular faceta. E é com exemplar subtileza e calma que o exerce, como que, ainda que seguro do papel activo da sua grandiosa obra de arte na nossa contemporaneidade em ideologias e público, sabendo da universalidade e simplicidade da mesma, como que despreocupado pelo estranhamento presente. Assim decorrem as maiores interpretações de duas outras portentosas figuras – Hedger, com a sua contenção emocional e envolvimento supranormal; Santaolalla, com os acordes místicos e profundos de uma longínqua guitarra, compondo os sons do futuro, os sons de uma vaga noção de esperança...

domingo, maio 02, 2010

Brincadeiras Perigosas (I)

Antes de ser violento, o original Brincadeiras Perigosas, uma das maiores obras do austríaco, é sobre ser violento. A câmara, fluidamente frontal e directa, deleita o mais interessado pelo terror, pela gratuidade que acaba por caracterizar toda uma cultura e sociedade. Mas, por outro, a sua crueza, a ousadia do casamento entre o protagonista e o público e da sequência do comando, indubitavelmente genial, acaba por condenar esse mesmo interesse, por denunciar a desumanidade inserida nesse voyeurismo, nessa vontade expressa e singular de ver o medo, de ver o horror, de ver o fio da vida cortado num piscar de olhos. É um filme que se vê e revê, múltiplas e milionésimas vezes. Basta passearmos na rua, sentarmo-nos à mesa ou  no sofá, carregar no botão para ligar a caixa mágica, arqui-inimiga de Haneke, e assistir à Morte.

sábado, maio 01, 2010

Os melhores de Tarkovsky


Enquanto que, por estas bandas, o mês de Abril se vai estender um pouco mais para nos possibilitar a visualização dos filmes que restam de Andrei Tarkovsky, deixo, aos leitores, as respostas dos que responderam à nossa pergunta. Agora, a todos os que seleccionaram o favorito (e aos que não o fizeram por qualquer outro motivo): qual escolheram e porquê?