segunda-feira, abril 12, 2010

Nostalgia

Sou da opinião que, mesmo o documental, o cinema é, por si só, uma manifestação artística que, encobrindo a realidade e mostrando-a como a mais genuína mentira, o autor dessa falsidade mais dela conseguirá debitar e moldá-la segundo os seus objectivos e ideias. Daí que, quase paradoxalmente, podemos considerar que o cinema é, da mesma maneira, uma das formas mais reveladoras do espírito que por detrás da câmara se esconde. Se, na maior parte das vezes, assistimos a casos indirectos do que acabo de referir, com histórias de ficção que aparentemente se restam por aí, então, noutras, é assumido com mais frontalidade o desejo intimista de se examinar pelas imagens, de transpor o mundo dos sonhos, das experiências e das denúncias para as imagens, revendo-se nelas, uma por uma.

Este é precisamente o caso de Nostalgia, que, como já assume pelo seu título, trata um sentimento de melancólica e aportuguesada saudade, de reviver daquilo que já foi, ou até não, um presente afastado, de desejo de total absorção das sensações que envolviam um tempo não possuído. Efectivamente, podemos acrescentar que a nostalgia é um estado natural, quase vital, à introspecção de um artista, de um poeta como o protagonista Gortchakov, de um poeta como o próprio Andrei Tarkovsky. Quando o lirismo de ambos se vê corrompido e exilado por forças externas (como uma Itália – um Mundo – que não compreende os verdadeiros propósitos de um criador desesperado, ou uma URSS altamente repressora daquilo que lhe é desconhecida ou desviante da convenção artística) ou até mesmo pela incompletude de um trabalho que não dissera tudo (e remetemo-nos directamente para o precedente documentário “Tempo de Viagem”, que fora co-realizado com Tonino Guerra), então parecerá, a ambos, que o exílio e a procura metafísica daquilo que é demasiado óbvio para o ser humano em terras estrangeiras serão os caminhos a seguir. Esta ideia existencialista, tão estouvada quanto natural, de se encontrar, em si mesmo e num local renovado, é materializada no mote desta obra, que nos apresenta a jornada de um poeta, Gortchakov como já referimos, acompanhado por Eugenia, uma tradutora apaixonada por este, que se rebela contra o seu espírito quando apercebida da gradual alienação que começa a proceder-se. É a partir desta alienação, que, obviamente, seguimos, influenciada por Domenico, a personagem lunática (ou, para outros, incompreendida) liberta de avenças sociais, que Tarkovsky aproveita para remisturar, como se de um sonho tudo se passasse a metaforizar, as personagens que se cruzam e as próprias circunstâncias. Se o divino é tratado objectiva e directamente numa primeira parte da obra, então, numa segunda, constatamos que o alcançamos sem o perceber muito bem, tal a complexidade é da colagem de momentos, sonhos, medos e vontades. Se, contudo, assistirmos, livres e atentos, às maiores cenas do filme, repletas de marcantes catarses, também denotamos que é na simplicidade que reside a transcendência pretendida e a inspiração celeste alcançada não pela pretensão, mas pela vivência do tempo e do espaço tal como ele é.

Tarkovsky enche-nos a alma até onde seria inimaginável, seja com a contemplação de um prado e de figuras anónimas (mas que nos pertencem), com o poder e a espectacularidade de um revoltado acto de suicídio, com o cumprimento paulatino e fulcral de um desafio de vida apenas com uma vela (e, neste caso, podemos dizer que nunca um plano sequência disse tanto ao ser humano), ou com o desfecho olímpico e divino de um homem que se encontrou em plena meditação. Todas estas sequências, recheadas de vida, de metáforas e de um estado esotérico de subsistência, são do mais belíssimo, do mais inultrapassável, do mais perfeito que alguma vez poderíamos conceber – e assim se realiza a mais pura e sincera das poesias e o descortinar de toda uma existência.
10/10

3 comentários:

  1. Belo texto.

    Já agora, a propósito desta imagem, lembrei-me disto: http://ohomemquesabiademasiado.blogspot.com/2010/01/diptico-79.html

    ResponderEliminar
  2. De todas as obras-primas de Tarkovksy esta foi a que menos me moveu e mesmo assim mereceu um 10 :D

    ResponderEliminar
  3. Sabe sempre bem ver o nome do Tarkovsky em qualquer lugar.
    Tonino Guerra é outro grande devidamente sublinhado. Kaos, deserto rosso e todas as colaborações com Deus Angelopoulos sao maravilhosos filmes.
    Belo cinema para aqui vai, neste belo blog.

    (já agora, apesar de injustamente desconhecido, ontem morreu um dos maiores. Deveria bastar a alguém realizar o rei das rosas para se tornar imortal)

    ResponderEliminar