quarta-feira, março 31, 2010

O cinema português nunca existiu tanto e com tão pouco

O alerta lançado por um grupo de realizadores e produtores para o estado em que se encontra o cinema português fala em calamidade pública. A realidade não anda longe.

Em 2009, o cinema português foi a retrospectiva de Pedro Costa na Tate Modern e a Palma de Ouro em Cannes para uma curta-metragem de João Salaviza, Arena, mais os 929 mil euros de receita de bilheteira de Amália, o Filme, e um possível blockbuster português falado em inglês, Second Life, que acabou por não sair das salas em ombros mas ainda assim fez 90 mil espectadores (desde 2004, só sete longas-metragens de produção nacional tiveram melhor desempenho). É muito, é pouco? É o que há, com o dinheiro que há: no ano passado, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) investiu um total de 8 milhões de euros no apoio à criação e à produção cinematográfica. São cinco milhões a menos do que o dinheiro disponível em 2000 e 7,5 milhões a menos do que em 2001. Agora já sabemos do que falamos quando falamos da "catástrofe iminente" do cinema português - uma declaração de calamidade pública que levou mais de 2300 pessoas, encabeçadas por Manoel de Oliveira, a exigirem, no Manifesto pelo Cinema Português de há duas semanas e meia, "uma intervenção de emergência" da ministra da Cultura.

Como é que se vive, afinal, do cinema português? "Vivemos mais para o cinema do que propriamente do cinema", resume Rodrigo Areias, 31 anos, com um historial de produção repartido entre Periferia Filmes, que fundou com João Trabulo, e o Bando à Parte, um colectivo do Porto. Está a filmar pela primeira vez com dinheiros do ICA - recebeu um apoio de 42 mil euros -, depois de ter feito uma longa, Tebas, e uma curta multipremiada, Corrente, sem financiamento público: "É possível fazer filmes em Portugal sem apoio do Estado, claro - mas tens de ter um gang contigo a alinhar nessa maluquice. Os técnicos e os actores do Corrente não receberam um chavo. Não dá para fazer a coisa assim a vida inteira."

E no entanto tem sido essa a vida inteira recente do cinema português - mesmo produtoras sólidas, como a MGN Filmes de Tino Navarro ou a Filmes do Tejo de Maria João Mayer, admitem que o sector está perto da ruptura. "Em 20 e tal anos nunca deixámos de cumprir um único compromisso. Mas não dá para grandes aventuras, como é óbvio. E a situação agravou-se muito com a diminuição dos apoios à produção, num país em que ainda não há condições para o autofinanciamento da actividade cinematográfica. Há produtoras mais conservadoras que conseguem resistir, mas muitas estarão a perguntar seriamente se devem fechar a porta", sublinha Tino Navarro. Luís Urbano, cuja O Som e a Fúria produziu um dos casos mais singulares do cinema português dos últimos anos, Aquele Querido Mês de Agosto (mais de 20 mil espectadores em Portugal, e uma carreira internacional que podemos considerar exuberante: só numa semana, fez mais de 4000 espectadores na Argentina), por exemplo: "Em 2009 não ganhámos nenhum apoio e por isso este ano não vamos produzir nada. Essa interrupção pode ser fatal para nós - e estamos a falar de uma das produtoras mais bem-sucedidas, o que dá para ter uma ideia da fragilidade de tudo isto." Também a Stopline, de Leonel Vieira, se viu impedida de fazer filmes no ano passado: "A produção está de facto paralisada", diz o realizador.

Mesmo quando há apoios do ICA e, portanto, dinheiro para remunerar a mão-de-obra envolvida, o cinema é uma actividade particularmente mal paga, sublinha Pedro Borges, da Midas Filmes, um dos primeiros subscritores do manifesto: "Nesse sentido, todos os filmes sérios são em grande parte autofinanciados. São feitos com montantes baixíssimos para o que deviam custar e para o que se gasta noutros países, e as pessoas ganham muito mal. Não é saudável." A estagnação dos financiamentos do ICA provocou um claro "empobrecimento" do sector, acrescenta Maria João Mayer: "Produzir filmes é economicamente catastrófico."

"Matar no ovo uma geração"

Em Portugal, o cinema é um tecido precário composto sobretudo por microempresas - mas que em 2005, segundo dados do estudo O Sector Cultural e Criativo em Portugal, encomenda do Ministério da Cultura à Augusto Mateus & Associados, empregava 6020 trabalhadores e representava 4,5 por cento da riqueza gerada em Portugal pelo sector (165 milhões de euros). Podíamos fazer muito mais e muito melhor, insiste Pedro Borges: "Há cada vez mais pessoas a querer fazer filmes e cada vez se apoiam menos filmes. Estamos a matar "no ovo", como se costuma dizer, toda uma nova geração."

O problema é estrutural e tem a ver com a gritante insuficiência do mercado português - somos um país pequeno e só vamos 1,6 vezes por ano ao cinema, quando a média europeia é de 2,3 vezes -, com o desinteresse dos privados pelo cinema de produção nacional (Pedro Borges diz que faz falta uma verdadeira Lei do Mecenato, António Ferreira, da ZEDFilmes, e Leonel Vieira dizem que é preciso copiar o modelo brasileiro de incentivos fiscais) e com a má relação entre o cinema português e os espectadores. "A quota de mercado do cinema nacional é de dois por cento. É irrisório. A média europeia é de 23 por cento. Se estivéssemos na média, tínhamos quatro milhões de espectadores e 20 milhões de euros de receitas de bilheteira", aponta Tino Navarro. Seria todo um outro filme, concordam os restantes produtores ouvidos pelo PÚBLICO.

Apesar de tudo, 2009 não foi um ano para esquecer: mesmo tendo tido de desistir, "por causa da paralisia do Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual [FICA]" (ver caixa), de um projecto em 3D, a MGN Filmes conseguiu manter a sua média de produção (um filme a um filme e meio por ano) e, em Coimbra, a produtora de António Ferreira teve "até um ano bastante produtivo" (duas longas, um documentário, três curtas), em parte graças a sinergias com o estrangeiro. "Estamos cada vez mais a fazer co-produções com outros países porque a estagnação financeira sente-se muito mais em Portugal. Aqui nunca houve muito dinheiro para fazer cinema - e o que há está mal distribuído", diz o realizador, cuja recente segunda longa-metragem, Embargo, foi "viabilizada fora de Portugal".

Publicidade e videoclips

Para sobreviver - sobretudo em Coimbra, na periferia do cinema português -, a ZEDFilmes teve de diversificar a sua área de negócios e ir também à publicidade e aos videoclips, que representam actualmente 50 por cento da sua produção. É esse jogo de cintura que lhe tem permitido manter uma equipa fixa de sete pessoas - e gerar dinheiro para fazer filmes não subsidiados: "Quando conseguimos o financiamento para o documentário Futebol de Causas, já estávamos há meses a filmar. É avançando por nossa conta que temos conseguido continuar a produzir. Mas sempre com muito aperto financeiro."

A Stopline também optou pela diversificação: "Estamos a produzir séries de televisão e filmes publicitários. Estrategicamente, desde que criámos a empresa quisemos estar presentes nas três áreas - até porque em Portugal seria impossível viver só de cinema. A Stopline só tem alguma estabilidade porque a publicidade é um sector forte da facturação", diz Leonel Vieira". No cinema, Brasil e Espanha têm sido parceiros estratégicos; é "o único caminho viável" para quem não quer "passar a vida a contar histórias só à medida do dinheiro que existe em Portugal", e das audiências portuguesas. Uma das próximas produções da Stopline é, de resto, a adaptação cinematográfica de Budapeste, o romance de Chico Buarque.

Fora de Lisboa, a Bando à Parte vai mantendo, com a produção de videoclips e habilidosas montagens financeiras com o estrangeiro (Brasil e Finlândia, por exemplo), uma actividade regular. "Mas estamos todos permanentemente em risco de passar a ir vender sapatos para o centro comercial. Infelizmente, somos uma espécie em vias de extinção", diz Rodrigo Areias. Ou pelo menos uma espécie na gaveta: na da Midas, por exemplo, estão neste momento projectos como o cinco-em-um Histórias de Amor (cinco contos de José Cardoso Pires realizados por Fernando Lopes, Fonseca e Costa, Joaquim Leitão, Margarida Cardoso e Cláudia Clemente), a série de três episódios para televisão que devia acompanhar a próxima longa de João Canijo, Sangue do Meu Sangue, e Com a Roupa do Corpo, documentário de Helena Matos sobre os retornados. Na da Filmes do Tejo, há uma longa de Inês de Medeiros que espera há dois anos por financiamento e um projecto de adaptação de um romance de José Eduardo Agualusa.

Não sabemos se, nem quando, os iremos ver. É portanto aqui que está pelo menos uma parte do cinema português: corremos o risco de ficar sem ele.
Fonte | in Público - Reportagem de Inês Nadais

terça-feira, março 30, 2010

"Lolita", Vladimir Nabokov

Mais do que um ícone, um fenómeno cultural do século XX, um estudo sociológico e psicológico do moderno pensamento, o controverso Lolita é, principalmente, uma bela história de amor.

Parecerá, na melhor das hipóteses, minimamente estranho a categorização da obra como um “romance” (não no sentido narrativo e formal, mas de temática), já que o russo Nabokov, dotado de uma capacidade criativa que é por demais magnífica, tende a explorar, mais do que o amor segundo as concepções clássicas, temas como o erotismo, o desejo sexual e o prazer que cometer certas “atrocidades” morais proporciona aos nossos protagonistas — Humbert Humbert, um intelectual quarentão natural de Paris, e Dolores Haze, uma pré-adolescente americana de doze anos que, para o narrador, pela manhã, um metro e trinta e dois a espichar do soquetes; era Lo, apenas Lo. De calças práticas, era Lola. Na escola, era Dolly. Era Dolores na linha pontilhada onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita. Humbert introduz-se a si mesmo, admitindo ser, até, no capítulo 20, um criminoso sexual, tentando justificar-se ao leitor com a seguinte passagem: Senhoras e senhores do júri, a maioria dos delinquentes sexuais que anelam por qualquer relação física, mas não forçosamente coital, com uma rapariguinha, são inofensivos, inadaptados, passivos e tímidos desconhecidos que só pedem à comunidade que lhes consinta o seu chamado comportamento aberrante, praticamente inofensivo, que os deixe praticar os seus pequenos, apaixonados, húmidos e discretos actos de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade lhes caiam em cima. Não somos demónios sexuais! (…) Não somos, positivamente, assassinos. Os poetas nunca matam.

Após a apresentação de Humbert, que segue a sua vida até conhecer a rapariga, com uma escrita extremamente fluida, cativante (para não dizer hipnotizante) e com pinceladas de comédia negra brilhantemente dadas, somos introduzidos aos esforços e métodos usados no sentido de este se aproximar, em todos os sentidos, de Lolita (até com a mãe chega a casar para facilitar o trabalho!). A segunda parte do livro é começada logo após a morte da mãe, que faz com Humbert e Lolita fiquem juntos e se inicie, entretanto, uma conjuntura trágica desfavorável para o destino dos dois.

Podemos, então, equiparar esta estrutura narrativa com a de um guião cinematográfico. Com capítulos curtos e uma narração que, ainda que seja feita do ponto de vista de Humbert, é objectiva, podemos facilmente pensar num tradicional guião de cinema, estruturado em três grandes partes, com todas as suas cenas e pontos de viragem. Misturando um romantismo e realismo inegáveis, este pequeno grande clássico da literatura mereceu adaptações à grande tela, em 1962, por Stanley Kubrick, realizador de “Laranja Mecânica” e “2001: Odisseia no Espaço” (o slogan how did they ever make a movie of Lolita? é-nos suficientemente elucidativo para percebermos como tinha sido bem aproveitada a polémica que girou em volta do livro), cujo argumento foi escrito pelo próprio autor, e em 1997, por Adrian Lyne, que, por não ter sido utilizado o guião de Nabokov, introduziu as cenas de sexo que no livro estão descritas. A sátira que é inerente à obra é, de certa forma, algo inédita, por denunciar a imbecilidade das formas de agir, pensar e sentir do ser humano, estilo que se impôs nas artes, nas décadas seguintes (o premiado Beleza Americana, de Sam Mendes, onde o nome do protagonista, também este com tendências pedófilas, Lester Burnham, é um anagrama para “Humbert learns”, segue, a seu jeito, moldes nabokovianos evidentes).

Muito se pode retirar de Lolita, mas é principalmente a crítica ao homem contemporâneo do Ocidente que deve ser, por todos nós, aproveitada para reflexão posterior. Brilhante na maioria dos seus aspectos, o livro merece ser lido e relido, pois pertence, seguramente, aos grandes clássicos da literatura.

segunda-feira, março 29, 2010

O maior festival de cinema do mundo

Assim o deverão ter considerado Haneke quando, ano passado, venceu a Palma de Ouro pel'O Laço Branco ou Van Sant com Elephant. Teremos, entre nós, cinéfilos, a certeza que o que entra em Cannes valerá a pena dar uma vista de olhos - e ainda para mais um cartaz tão apelativo como este, com a Juliette Binoche a mostrar-nos a luz e igualdade que ainda pode existir no cinema do mundo.

domingo, março 28, 2010

Em Abril

Conseguem já antever quem será o próximo visitante d'O Sétimo Continente?

sábado, março 27, 2010

Do bullying escolar (e não só)

Fenómeno estranho, este, o bullying. Tal como tudo na aldeola minúscula e passiva que Portugal cada vez mais é por venerar o seu deus recém-adquirido e importado do estrangeiro (a comunicação social sensacionalista), bastou um rapaz atirar-se ao rio para que a violência física e psicológica entre a camada adolescente, chamada de um neologismo que pegou moda, passasse a ser o tema em voga das revistas-cor-de-rosa, dos jornais cor-de-rosas disfarçados de azul, das televisões cor-de-rosa, das estações de rádio cor-de-rosa, das conversas de autocarro, das palestras escolares e, como se tudo não bastasse, do governo, pressionado, que se aprontou a demonstrar medidas que reduzissem a situação. Não, esta publicação não vai servir para esclarecer que esta existe há séculos ou que é mais englobante que o escolar, nem servirá para enegrecer (ou dignificar) os adolescentes, cuja voz, por vontade da apática maioria, cada vez menos se ouve, nem cuidará do papel cada vez mais preponderante (diremos tirano) dos mass media que, a título de curiosidade, justificando a isto e àquilo os casos de violência nas escolas que denunciam, estão implícita e intrinsecamente relacionados com origem do actual bullying, manifestado sob as mais diversas formas, como já pude aqui explicar. Mas, enfim, este post pretende sugerir ao leitor mais curioso, ou às escolas menos iluminadas, uma série de cinco películas que merecem, hoje mais que nunca, serem visualizadas e, sobretudo, reflectidas. Elephant, de Gus Van Sant, é, claro, uma referência absoluta. Ainda que possam não tratar directamente o tema, demonstram-nos também a poderosa manipulação da comunicação social, a origem da violência ou a necessidade de o homem ser compreendido nos dias que correm. Ah, e espero que isto ainda atraia humanos, já que num dia se movem contra os alunos, estupidificando-os, e, noutro, se solidarizam por eles (ou se interessam por outros fait divers).

segunda-feira, março 22, 2010

A música do silêncio


Será amanhã, às 19:30, que a Casa da Música, no Porto, fará uma inédita homenagem ao compositor avant-garde John Cage, apresentando a sua mais famosa e controversa peça: 4'33'', inicialmente disposta para piano mas alargada a qualquer tipo de instrumento. Tal como o nome indica, a sua duração, de quatro minutos e trinta e três segundos, resta-se em três movimentos... sem qualquer nota musical. Esta obra, que ficou internacionalmente conhecida por chocar e debelar as originais concepções de arte e música, pretende, em traços gerais, abraçar o público numa melodia sempre distinta: efectivamente, qualquer audição de 4'33'' estará marcada por um diferente ruído, sons a que devemos prestar atenção e, apenas, sentir. Cage foi, também,  um notável escritor e filósofo norte-americano, pioneiro nas experiências da música "ao acaso". Abarcar nesta aventura e experiência por demais enigmáticas é, convenhamos, um tremendo desafio que o homem do Ocidente, habituado e confortado no ruído disforme e confuso da cidade e amedrontado com a calmaria do silêncio, deve estar disposto a iniciar, com aceitação - porque é lá que reside a maior revelação de todas. A emissão poderá ser vista em directo a partir do portal da casadamusica.tv

domingo, março 21, 2010

Dia do Pai


Já vai um pouco fora da data mas nunca é tarde demais para pensar. Para aqueles que julgam não ser preciso fazê-lo, apreciem o vídeo (cuja fotografia saudosista é belíssima) ou vejam o grande O Quarto do Filho, do Moretti. Apenas e só para reconhecer o enorme e cada vez mais universal papel do pai na família.

...e Primavera

Bem, como já devem (ou não) ter reparado, desde a Primavera de 2009 que tem havido uma série de publicações agendadas para o início de cada estação do ano, no âmbito de um grandioso filme: "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera", que explora temas variados como o mito do eterno retorno, os valores religiosos, o amor, a redenção, a vida, a morte e a reencarnação. Vejam, é, indubitavelmente, das melhores películas alguma vez escritas e realizadas.
[Para ler a crítica de Rúben Gonçalves, clique aqui.]

Sentir, segundo Wong Kar Wai

A primeira vez que contactei com Wong Kar Wai foi num solitário início de madrugada de Domingo, algures no ano passado, apanhando (quase) por acaso "My Blueberry Nights" na televisão. Decidi não mudar de canal, já que quisera tê-lo ido ver ao cinema sem o ter feito realmente; mas, como acabei por adormecer a meio, concluí na manhã seguinte que não estava com a disposição apropriada para ver Kar Wai (ou o que quer que fosse) nessa noite. Não foi, portanto, um primeiro encontro muito auspicioso, e passariam meses até que a curiosidade me levasse a ver algo dele - no verão, mais concretamente, quando assisti ao seu "2046".

Olhando para trás, apercebi-me de que as impressões em mim suscitadas pelo filme não eram completamente nítidas. Claro, tinha-me rendido a toda a beleza visual de que a película é possuidora; o facto de ter citado vários trechos de diálogos ou voice-overs em conversas onde o realizador era mencionado atesta a forma como me tinha marcado, e reconheci, mal terminada a sua visualização, que estava perante uma obra-prima. Constatei, todavia, ainda que sem conseguir determinar a sua causa, uma certa distância em relação às personagens e à própria história em si. E agora, vistos outros - não todos- filmes dele, e tendo procedido há algumas horas à devida reapreciação de "2046", percebo agora que o porquê de me ter sentido assim foi o ter começado pelo fim.

Pelo fim, porque "2046" é, simultaneamente, o culminar do aperfeiçoamento e refinação de uma técnica que Kar Wai foi utilizando, com variantes, em toda a sua filmografia, e a continuação da história de personagens que encontramos em "In The Mood for Love" ou, mais atrás, cronologicamente falando, em "Days of Being Wild".

Com efeito, "2046" contém aquilo tudo aquilo que nos permite reconhecer a autoria do cineasta chinês relativamente a um filme, desde o emprego do slow-motion (aqui não produzindo, contudo, cenas tão bem orquestradas como as presentes no já mencionado "In The Mood for Love"), ao leitmotiv, quer instrumental, quer cantado em espanhol, como já acontecia no filme de 2000, aos momentos cinematográficos que distinguem os seus argumentos e à detalhada caracterização das personagens que protagonizam as suas histórias. Mas, acima de tudo, a poesia, que brota de cada plano, de cada sequência, autênticas elegias sobre o ser humano: raras vezes a fusão de som e imagem proporcionou resultados tão pungentes e harmoniosos, e nunca iguais àqueles conseguidos em "In The Mood For Love" e "2046" (a meu ver, ambos constituindo o expoente máximo da obra do realizador) pois, influências à parte, Kar Wai é único, e o seu toque pessoal inconfundível.

Tal é visível desde logo em "Days Of Being Wild", na minha opinião o primeiro filme em que o génio do autor começou a despontar verdadeiramente. Nele visitamos Hong Kong nos anos 60 e conhecemos pela primeira vez a impetuosa e emocionalmente descontrolada Lulu (ou Mimi), sobre quem, em "2046", se diz o seguinte: "She didn't mind sad endings. The male lead could change as long as she was the leading lady". Nada teria captado melhor a essência da personagem, na verdade - e, generalizando, nada serviria de descrição mais adequada à trajectória das personagens criadas pelo realizador asiático. Constantemente desencontradas, separadas por motivos exteriores como a imposição do dever conjugal ou da fidelidade a laços de sangue, por motivos interiores como a dissonância de expectativas e sentimentos que vão alimentando, sempre em busca de ventura mas continuamente atormentadas pela frustração derivada da não prossecução das perspectivas da felicidade por elas ambicionada, tornam-se seres errantes, em geral presos a um passado de que não se orgulham e resignados a um futuro de igual auto-descontentamento, pessoas cujas relações que estabelecem com outrem nunca se revelam longas o suficiente para as fazer emergir da solidão por vezes angustiante que perpassa as suas vidas - como nos mostra o breve encontro entre o polícia e a femme fatale em "Chungking Express".

Mas nem tudo é tristeza e taciturnidade em Wong Kar Wai. Faye Wong encarna, curiosamente, duas das personagens mais vivazes a passar pelos seus filmes - a descontraída e irreverente Faye, em "Chungking Express", e a adorável apaixonada Jing-wen em "2046", possuidora de uma inocência e castidade de que as outras personagens (nomeadamente a de Tony Leung e a de Ziyi Zhang) se encontram desapossadas, entregando-se à luxúria como meio de estabelecer um contacto - de qualquer forma - entre si. Não incluo Bai Ling nesta pequena lista porque é evidente que a sua forma leviana de olhar a vida é só uma tentativa de se furtar a encará-la realmente.

São personagens, em suma, com um poderoso desejo de sentir - e o cineasta, conhecedor do género humano e dos seus paradoxos, explora habilmente as consequências várias da contradição ou confirmação dessa vontade, criando à volta disso um círculo de experiências e situações que, mais do que nos darem a conhecer melhor as personagens fictícias que passam no ecrã, nos fazem reflectir sobre nós, que estamos em frente a ele a assistir. Sim, os seus filmes são, em essência, histórias de amor - e embora eu pense que não faz muito sentido falar do homem esquecendo esse sentimento, talvez o mais multifacetado que ele tem possibilidades de experimentar e, igualmente, o que lhe é de mais difícil compreensão, não posso deixar de reconhecer que isto poderá tornar o seu público-alvo muito restrito, levando porventura a uma injusta e redutora categorização do artista chinês. O que é uma pena, pois a forma como a distância entre os protagonistas de "In The Mood For Love" e os seus cônjuges é estabelecida, nunca sendo mostrada ao espectador as faces destes últimos, ou o íncrivel sentido de unidade e transcendência existente em toda a sua obra, materializado em "2046" (recheado de referências a outros filmes do realizador, desde o resgate de personagens anteriormente apresentadas à recorrência de temas que ambientaram as películas anteriores, ou o evocar de pequenos momentos emblemáticos, como o instante em que a personagem de Tony Cheung descalça uma personagem feminina, numa situação semelhante a algo presenciado em "Chungking Express" denotam uma mente criadora dotada de génio verdadeiro.

Continuar a conhecer mais aprofundadamente o seu trabalho vai ser para mim um prazer que antecipo com agrado; deixo-vos com um convite a conhecê-lo também, juntamente com a frase que "abre" o "2046": "All memories are traces of tears". Porque, citando certa rubrica radiofónica, se calhar vale a pena pensar nisto.

quinta-feira, março 18, 2010

Verão 2009


Poderia discorrer aqui sobre o variadíssimo conjunto de memórias evocado por cada uma destas canções, ou sobre a influência da música, em geral, na minha vida, mas, depois de breve actividade reflectiva, decido apenas deixar-vos, a título de sugestão, algumas das músicas que me transportam até ao verão de ano passado. É tarde, afinal, e o objectivo e conteúdo deste posts eram drasticamente diferentes quando fiz log in no blogger (péssima desculpa para justificar a inexistência de um texto que tornaria este post ligeiramente menos filler, eu sei...).













domingo, março 14, 2010

Disponível para Amar

Há qualquer coisa de simultânea e paradoxalmente compreensível e indefinível na gramática de Disponível para Amar ou, se quisermos incorrer a generalizações, no cinema de Wong Kar-Wai. Se, por um lado, consideramos que o autor tem criada, aqui, uma ponderada lógica formal e narrativa na demonstração das múltiplas jornadas do ser humano que se entrecruzam, por outro, consideramos também que a abordagem subjectiva e indirecta de tratar o interior do homem é, tal como ele, indeterminável e dotado de uma imprevisibilidade e desentendimento distintivos. A sua arte é e não é subtil: é-o em comparação ao folclore hiperactivo dos filmes que afundam as actuais salas, e não o é pois, ainda que com um requinte paulatino, testemunha e guarda, com uma alegria, uma energia e um calor evidentemente sensacionistas, as memórias de um universo que transborda, todo ele, tão fora como dentro da mente dos anónimos actores, de uma beleza fulgurante e extrema. O que não é, na verdade, ambíguo e flutuante na forma como Kar-Wai cria é o reconhecimento da importância daquilo que faz, sobretudo deste filme – estudar o amor e, sem cair nas conhecidas americanizações, reformular a maneira como é este tratado, tendo sempre em atenção manter a sua original forma, é, dizemos para nós, uma árdua tarefa. O poeta do oriente tem, e sabe-lo bem, o dom de a fazer com uma deslumbrante facilidade e esta grande, grande obra é um bom exemplo disso.

Desmistificando a ideia de que é preciso haver concretização e consumação física para a existência (ou o assumir) de algo de tão cristalino como o amor, vemo-lo captado, a par da angústia advinda da existência das barreiras da moralidade e das convenções sociais ou do prazer quase orgásmico na simples vivência do quotidiano (um pouco como em “Um Homem Singular”, a recente estreia debutante de Tom Ford, curiosamente também ambientado nos anos 60), em sequências, quase dependentes entre si, que fundem, na totalidade, a preciosa imagética e a música. Se na representação mais objectiva da realidade encontramos deliciosos enquadramentos dos nossos dois protagonistas, casados, que se unem pela espontaneidade das circunstâncias do dia-a-dia, interpretados magistralmente por Tony Leung e Maggie Cheung, tal como achamos diálogos naturalistas de magnífico pendor, então na representação mais subjectiva do mundo, onde a câmara se embebeda pela psique das personagens, temos extraconsiderados, pelo slow motion, os singelos gestos de cada um, a linguagem corporal e emocional que por si dita a beleza, filmados através de sequências que valorizam o perfeito casamento entre a luz brilhante, a hiper-saturação, o contraste das cores que pintam o guarda-roupa e os cenários escolhidos a dedo; a música, repetida, leve e trágica (seja “Aquellos ojos verdes”, “Quizas”, ou, particularmente, “Yumeji’s Theme”); a montagem, atípica e delinquente. Cada frame evidencia uma acuidade e reflexão possantes onde até o tempo, que se perde em si à medida que a história se intensifica e auto-mutila, desempenha um fulcral elemento. Assim se justifica o título original da película, "A época das cerejeiras", aludindo ao simbolismo que a flor de cerejeira representa, o amor, a beleza, a juventude e a passagem do tempo. O que o nosso casal protagonista afigura estende-se por todos os espectadores que com disposição recebam a fita. A liberdade de poder amar e de poder ser amado é, talvez, um dos bens mais raros da humanidade.

Assim, tudo é essencial para maximamente ser vivido – assim é a filosofia do asiático que, tendo escrito e realizado o filme, acabou por nos deixar o que acaba por ser uma das maiores histórias de amor do cinema. A sequência que, por fim, vos deixo é das mais belas (não haverá palavra mais certa) que alguma vez verão ou voltarão a ver. Resta-nos agradecer a Kar-Wai.
9,5/10

quinta-feira, março 11, 2010

Um apelo

Negro” foi uma das palavras, para além de altamente “incerto”, que utilizei, numa publicação em Fevereiro passado, para descrever o actual panorama do cinema nacional – e, dizemos para nós, correctamente. Foi hoje arremetida uma petição, designado como Manifesto pelo Cinema Português, por produtores de cinema e realizadores como Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva Melo, João Botelho e Pedro Costa. Passo a transcrever, integralmente, a notícia lançada hoje pela versão online do jornal Público:

Manifesto de realizadores e produtores alerta para “catástrofe iminente” do cinema português
Um conjunto de realizadores portugueses, entre os quais Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva Melo, João Botelho e Pedro Costa, e de produtores de cinema, lançaram hoje uma petição Manifesto pelo Cinema Português, dirigida à ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas. O texto (disponível no site Petição Pública e que será publicado amanhã no PÚBLICO) traça um quadro negro da situação no cinema que, dizem os subscritores, “vive hoje uma situação de catástrofe iminente e necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos”.
Manoel de Oliveira é um dos signatários.

Afirmando que o financiamento do cinema português “desceu na última década mais de 30 por cento” (e lembrando que este é financiado por uma taxa sobre a publicidade e na televisão) e que “a produção de filmes, documentários e curtas-metragens não tem parado de diminuir”, os realizadores e produtores criticam sobretudo a “enorme encenação [...] que só serviu para legitimar o oportunismo de uns tantos” que foi a criação de um Fundo de Investimento para o Cinema e o Audiovisual (FICA).

Este fundo, que “era suposto trazer à produção 80 milhões de euros em cinco anos”, está “paralisado e manietado pelos canais de televisão e a Zon Lusomundo”, dizem. Investiu-se “quase nada” e o pouco que se investiu foi “em coisas sem sentido”. Por isso, os subscritores consideram “imperioso e urgente” que se normalize o funcionamento do Fundo “multiplicando as verbas disponíveis para investimento na produção de cinema e “tornando as suas regras de funcionamento transparentes e indiscutíveis.” O FICA foi criado em 2007 e envolve, para além do Estado, a Zon, a TVI, a SIC e a RTP (mas não o Meo, a Cabovisão e o Clix, facto que os produtores e realizadores também contestam).

Pedem ainda à ministra – “depois de mais de seis anos de inoperância e desleixo dos sucessivos ministros da Cultura, que conduziram o cinema português à beira da catástrofe” – uma política que leve à “normalização da relação da RTP com o cinema português, fazendo-a respeitar o Contrato de Serviço Público” e que aumente “de forma significativa o número de filmes, de primeiras-obras, de documentários, de curtas-metragens, produzidos em Portugal.”

Entre os subscritores do manifesto, que sublinham o “indiscutível prestígio internacional do cinema português”, estão ainda os realizadores João Canijo, Teresa Villaverde, Margarida Cardoso, Bruno de Almeida, Catarina Alves Costa e João Salaviza e produtores como Maria João Mayer (Filmes do Tejo), Alexandre Oliveira (Ar de Filmes) e Pedro Borges (Midas Filmes).

Deixo, também, o manifesto integral, que pode ser visto e assinado (sugiro que todos o façam), se acederem a partir daqui:

Nunca como nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa. E nunca como hoje ele esteve tão ameaçado.
No mesmo ano em que um filme português ganhou em Cannes a Palma de Ouro da curta-metragem e tantos e tantos filmes portugueses foram vistos e premiados um pouco por todo o mundo, o cinema português continua a viver sob a ameaça de paralisação e asfixia financeira.
Desde há dez anos que os fundos investidos no cinema não cessaram de diminuir: a produção e a divulgação do cinema português vivem tempos cada vez mais difíceis.
E a criação de um Fundo de Investimento (e a promessa de um grande aumento de financiamentos), revelou-se uma enorme encenação que na generalidade só serviu para legitimar o oportunismo de uns tantos.
O cinema português vive hoje uma situação de catástrofe iminente e necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos e em particular da senhora Ministra da Cultura.
O cinema português - o seu Instituto - ao contrário do que é repetido vezes sem conta, é financiado por uma taxa (3,2%) sobre a publicidade na televisão, e não pelo Orçamento de Estado.
O financiamento do cinema português desceu na última década mais de 30% e a produção de filmes, documentários e curtas-metragens, não tem parado de diminuir.
O Fundo de Investimento no cinema, que era suposto trazer à produção 80 milhões de euros em cinco anos, está paralisado e manietado pelos canais de televisão e a Zon Lusomundo, e não só não investiu quase nada, como muito do pouco que investiu foi-o em coisas sem sentido.

Por isso se torna imperioso e urgente
a) normalizar o funcionamento desse Fundo e multiplicar as verbas disponíveis para investimento na produção de cinema, nomeadamente multiplicando as receitas do Instituto de Cinema, e tornando as suas regras de funcionamento transparentes e indiscutíveis;
b) normalizar a relação da RTP (serviço público de televisão) com o cinema português, fazendo-a respeitar a Lei e o Contrato de Serviço Público, assinado com o Estado Português;
c) aumentar de forma significativa o número de filmes, de primeiras-obras, de documentários, de curtas-metragens, produzidos em Portugal;
d) e actuar de forma decidida em todos os sectores – não apenas na produção, mas também na distribuição, na exibição, nas televisões (e em particular no serviço público), e na difusão internacional do cinema português.

Depois de mais de seis anos de inoperância e desleixo dos sucessivos Ministros da Cultura, que conduziram o cinema português à beira da catástrofe, impõe-se:
1. Normalizar o funcionamento do FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual) reconduzindo-o à sua natureza original: um fundo de iniciativa pública, tendo como objectivo o aumento dos montantes de financiamento do cinema e da ficção audiovisual original em língua portuguesa e o fortalecimento do tecido produtivo e das pequenas empresas de produção de cinema. E fazer entrar nos seus participantes e contribuintes os novos canais e plataformas de televisão por cabo (meo, Clix, Cabovisão, etc), que inexplicavelmente têm sido deixados fora da lei;
2. Multiplicar as fontes de financiamento do cinema português, nomeadamente junto da actividade cinematográfica, recorrendo às receitas da edição DVD (a taxa cobrada pela IGAC, cuja utilização é desconhecida, e que na última década significou dezenas de milhões de euros); à taxa de distribuição de filmes (que há décadas não é actualizada) e à taxa de exibição. As receitas das taxas que o Estado cobra ao funcionamento da actividade cinematográfica devem ser integralmente reinvestidas na produção e na divulgação do cinema português (produção, distribuição, edição DVD, circulação internacional);
3. Aumentar as fontes de financiamento do Instituto de Cinema, para aumentar o número, a diversidade, a quantidade e a qualidade, dos filmes produzidos. Filmes, primeiras-obras, documentários, curtas-metragens, etc.
4. Apoiar os distribuidores e exibidores independentes, e estimular o aparecimento de novas empresas nesta actividade, de forma a que o cinema português, o cinema europeu e o cinema independente em geral, possam chegar junto do seu público. E apoiar os cineclubes, as associações culturais e autárquicas, os festivais e mostras de cinema, que um pouco por todo o país fazem já esse trabalho;
5. Fazer cumprir o Contrato de Serviço Público de Televisão por parte da RTP, que o assinou com o Estado Português, e que está muito longe de o respeitar e às suas obrigações, na produção e na exibição de cinema português, europeu e independente em geral. E contratualizar com os canais privados e as plataformas de distribuição de televisão por cabo, as suas obrigações para com a difusão de cinema português.

O cinema português, que vale a pena, tem hoje em dia, apesar da paralisia, quando não da hostilidade, dos poderes públicos, um indiscutível prestígio internacional. Os seus realizadores, actores, técnicos, produtores, não deixaram de trabalhar apesar de tudo o que se tem vindo a passar. Está na altura de os poderes públicos assumirem as suas responsabilidades.
É necessária uma nova Lei do Cinema, mas é urgente uma intervenção de emergência no cinema português.

Na minha perspectiva e muito infelizmente, constato que este manifesto de (muito) pouco servirá para salvar o nosso cinema. E digo “nosso” para sublinhar o carácter de pertença de uma cultura que é nossa, minha, dos amigos e, como nos parece óbvio, dos leitores e bloggers. O que quero, mais uma vez, apelar é à reversão do nosso papel passivo, na análise de uma sociedade indiferente ao avanço e relançamento de uma expressão de arte perdida nacional e internacionalmente, para uma postura mais activa neste movimento. E, caríssimos, torna-se urgente fazermos algo, neste momento, enfim, abanarmos um governo desinteressado e uma política de insensibilidade e displicência centenária. E este apelo à sensibilização colectiva dos autores dos blogs de cinema portugueses e restantes cinéfilos, este apelo a que nos unamos na frente pelo cinema de Portugal é, sim, desesperado, pois não podemos, de forma alguma, cair no erro de deixarmos que a situação piore ainda mais do que já está. Algo, urgentemente, tem que ser feito e isso só acontecerá, leitores, se estivermos todos com disposição para tal. Porque crítica sem acção não é crítica, é capricho infundado e inútil. Porque voltarmos as costas ao que é nosso para nos satisfazermos apenas com o que vem de fora é voltarmos as costas ao nosso futuro.

segunda-feira, março 08, 2010

"E esse homem sou eu..."


Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro. De que poderia falar na conferência? Nada mais há na vida do que beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez. Riqueza ou miséria, ciência, glória, vexame, e a política e até a arte para tantos artistas, conhecimento do homem no corpo e no espírito – quantos modos de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental. Mas o que é extraordinário e me exaspera é que eu próprio tenha precisado de uma vida inteira para o saber. E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se… Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas – e esse homem sou eu…

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo… Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»? Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes me angustia de terror… E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim…
 
Reler um ou outro excerto de Aparição, da autoria de Vergílio Ferreira, é como se estivesse a lê-lo pela primeira e inédita vez. Reflectindo sobre a identidade, a existência, a vida e a morte, o luto, a realidade, a percepção e o significado de nos "sabermos", pode-se dizer que a abismal importância  do livro permanece actual – a sua universalidade e intemporalidade é, há que o admitir, incontestável. Sem dúvida: uma das maiores obras da “nossa” literatura, da arte de toda a humanidade.

domingo, março 07, 2010

O triunfo da popularidade

Será daqui a algumas horas (quatro, mais ou menos) que muitos de nós, na melhor das hipóteses, nos reuniremos frente à televisão (sintonizada naquele canal que, de mim, só retira o sentimento de aversão, tal é a sua colossal qualidade), esperando saber, em directo e em primeira mão, quais os vinte e quatro vencedores da 82ª cerimónia dos Óscares, realizada, como já tem sido habitual, no palco da Kodak Theatre, em Los Angeles.

A megalómana cerimónia, se antes reconhecida por ser a mais importante e crível no que toca à gratificação daquele que seria, supostamente, “o” filme do ano, depois da revolução a que a Internet foi responsável, tem vindo a perder a magia que a envolvia, tal como a sua credibilidade. Centrada em Hollywood, desmascaram-se as tentativas de propaganda aos votantes, assumiu-se implicitamente a vontade expressa de influenciar aqueles que decidem, anualmente, o melhor que foi feito na sétima “arte”, tal como se declarou, pública e subtilmente, o centralismo norte-americano de que vivem os Óscares. Sempre assim foi, não nos iludamos. É uma evidência que cada cinéfilo tem que aceitar – e o facto de, em 2010, estarem nomeados 10 filmes em vez de 5 para promoção e busca de audiências televisivas e, também, de estarem divididos melhor filme / melhor filme estrangeiro, ilustra bem esta realidade. Algo que, também implicitamente, se tem vindo a assumir é a busca de inclusão dos filmes independentes (ou, pensando melhor, “so called”): “Juno” e “Little Miss Sunshine” são dois exemplos passados bem ilustrativos do que acabo de falar. Contudo, esta procura por um equilíbrio entre aquilo que vem da indústria e aquilo que é mais “diferente” (reforcem-se as aspas), algo que foi visto como claro aquando da luta, ano passado, entre “O Estranho Caso de Benjamin Button” e “Quem Quer Ser Bilionário?”, tem vindo a acentuar as dificuldades internas da Academia em agradar tudo e todos. O que é, obviamente, compreensível. Cada vez mais o cinema se tem fragmentado (seja em género, seja em modus operandi, seja em intenções, seja em origem), e a busca por um consenso que faça reunir, novamente, milhões frente a um televisor para ver a entrega dos Óscares (como aconteceu aquando das gratificações “Titânic”a e “Gump”iana) é já uma utopia declarada. A estatueta dourada, perdendo o seu brilho, importância e “glamour”, não passa hoje disso mesmo: de um prémio merecedor de quarenta e cinco segundos em agradecimentos, de um nome e de uma tira de DVD (como nos falava o jornal “Ípsilon”, na passada sexta-feira). Os Óscares passaram a desempenhar uma função social, em vez de reconhecer a qualidade e o valor das obras que vai nomeando (onde está “Um Homem Singular”?): e tudo depende do contexto. Se “Forrest Gump” venceu e calcou “Pulp Fiction” depois da celebração do belíssimo “A Lista de Schindler”, foi para manter o equilíbrio de felicidade e esperança que o cinema supostamente deveria transmitir. O mesmo, exactamente, se sucedeu ano passado: depois do niilismo de “Este País não é para Velhos”, tornou-se óbvia a vitória do slumdog, dos pobres, do “desigual”, do brilho, da esperança, da mudança (veja-se a vitória de Obama nesse tempo). E se a cerimónia de hoje passar, apenas e só, pela reprodução do que se sucedeu com os passados Globos de Ouro (mas com uns passos de dança como ano passado), então aguarda-nos uma valente perda de tempo.

A Academia não gosta de surpreender, digam o que almas sábias disserem – numa altura em que, sob pressão das cadeias televisivas, se vê obrigada a navegar entre a popularidade das suas películas, torna-se clara a vitória do Rei do Mundo. “Avatar” (crítica) percorreu países, é dos filmes mais rentáveis de sempre (“o” mais, dizem!), esteve sob o signo da revolução técnica, a sua magnificência requer-se imortal e incontestável (é o que se diz, e não me atreveria a calar um planeta embusteado). Mas bem… se há um Óscar que, ano menos ano, será criado e que deveria ser entregue a posteriori a este trabalho de pirotecnia, seria o de Melhor Propaganda. Mas, não sei bem porquê, cansa-me falar deste filme. A sua rivalidade não é a melhor, também é certo: “Precious” é o filmezito que Oprah tanto quis produzir e que não passa de um mega-dramalhão que sobrevive das suas interpretações, “Nas Nuvens” é a crítica social da actualidade que se perde num guião típico, “UP – Altamente!” é a respeitada execução da Pixar que se clonou e fugiu da categoria a que pertence (melhor filme de animação), “Estado de Guerra” é o gelado voyeur de um país frágil pela guerra no Iraque, “Um Homem Sério” é o resultado desequilibrado de dois irmãos que sabem que poderiam ter feito mais. Há a triste certeza de que “Distrito 9” (a docureflexão original e inédita de uma humanidade cruel e discriminatória) e “Uma Outra Educação” (a simples mas cativante história que versa a jornada de uma estudante dos anos 60 dividida entre duas escolhas sociais) não vingarão. Resta-nos “Um Sonho Possível” (que aguardo com o entusiasmo característico de alguém a morrer) e “Sacanas sem Lei”. E este, sim, é cinema puro, inteligente, no seu estado vertiginoso e ávido. Ainda que naturalmente pretensioso na sua aura de marketing, a qualidade da obra (na narrativa, montagem, interpretações, fotografia) e talento de Tarantino fazem-me acreditar o justíssimo vencedor seria este – algo que não acontecerá, infelizmente. Sempre posso estar errado (gostava, desta vez, que sim), mas a mega-produção de James Cameron tem demasiados fãs para que a Academia os desiluda. Lá se encontra a função social de que vos falei. Gostava, por fim, de ver Colin Firth e Michael Haneke a discursar – ganharia a noite se os visse no meu televisor.

Não vos minto, contudo: penso que será o sonho de qualquer um de nós, que gostasse de enveredar pelos caminhos suicidas do cinema, subir as escadas daquele palco e receber, nas mãos, a estatueta. O peso desta, nesse momento, estará de tal forma agigantado que nos aperceberíamos, aí, que os Óscares ainda vão sobrevivendo, apesar de todas as suas contradições e desequilíbrios. Continuam a ser o momento que leva o meu coração a acelerar-se quando ouço o “and the Oscar goes to”. Cada vez mais tem chorado e desiludido, mas essa é outra história.

segunda-feira, março 01, 2010

Março e Wong Kar-Wai

A Primavera estará, este ano, associada a um dos maiores nomes do cinema contemporâneo - o chinês Wong Kar-Wai que traz à iniciativa preconizada, uma vez mais, pelos blogues CINEROAD, O Sétimo Continente e Split Screen, uma visão oriental e delicada do ser humano e das vertentes mais profundas nas quais este mergulha. Assim será que o amor, as convenções, o desejo e a procura inconstante da felicidade serão tratados por este sublime artista que captará estes temas predilectos filmando a errância contínua de múltiplos espíritos (encarnados, não poucas vezes, pelos mesmos corpos actuantes), que se cruzam nas disformes instâncias da vida. O seu estilo formal procede-se pela via de uma característica e única procura de coadunar a imagem, que vive das fortes e contrastantes cores, dos cenários que por si falam e de uma pormenorização na caracterização das personagens e guarda-roupa, com o som, que encontra na melodia e na música um meio de entrar na mente dos protagonistas, com a narrativa, que não mais tenta senão descrever as típicas e sofridas jornadas de qualquer pessoa. Desta forma, a juntar esforços para tudo isto analisar, contamos com o blogue Cinema as my World, convidado neste Março vivaz e apaixonado. Desejo a todos os autores boa sorte e uma rica experiência, tal como aos leitores, que espero que nos acompanhem com atenção - Kar-Wai o merece, e a Primavera também.