domingo, fevereiro 28, 2010

Brincadeiras Perigosas (II)

Que realizador recria o seu próprio o filme, cena por cena, exactamente como o original (crítica em breve)? Qual a razão minimamente lógica para o fazer? Se, em termos comparativos, podemos considerar que a obra auto-plagiada de Michael Haneke, “Funny Games U.S.” (direccionado, sem medos e fachadas, para um país que valoriza cada vez mais os remakes cinematográficos), tem interpretações obviamente desiguais do protótipo, podemos considerar que Naomi Watts e Michael Pitt estão, apenas e só, de tirar o fôlego ao espectador. Será este trabalho um grito às reproduções norte-americanas ou apenas um meio crítico de demonstrar como uma obra se torna apenas acessível ao actual mundo globalizado se for falada em inglês? Ou, ainda, uma forma para criticar a cultura americana por promover os temas que o filme bem estuda (a violência, o sadismo da comunicação social e do próprio cinema)? A ousadia do austríaco levanta, também, uma pergunta filosoficamente pertinente — estará este projecto susceptível de ser considerado uma obra de arte, não sendo inédito? Ficam as questões e a promessa de que temos perante nós um grande filme.
8/10

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Singular

Um dia, talvez, venha a descrever, por simples e redutoras palavras, a experiência que foi viver tamanha perfeição. Não caio em exageros - Um Homem Singular, a estreia no cinema do designer de moda Tom Ford, é Arte, Arte no seu estado pleno e sublime... uma reflexão belíssima e intemporal, como há muito não via, sobre o amor, a vida, a morte, a beleza do mundo e a condição humana, perdida na monstruosa sombra do medo e da aparência. Que feito indescritível... Sem precedentes e singular. Verdadeiramente singular.

domingo, fevereiro 21, 2010

Lumière e Companhia [Michael Haneke]


De forma a comemorar os primeiros 100 anos do cinema, Michael Haneke junta-se a um grupo de mais trinta e nove conceituados realizadores (John Boorman, Fernando Trueba, David Lynch, Arthur Penn, Liv Ullmann, Spike Lee, Peter Greenaway, James Ivory, Costa-Gavras, Claude Miller, Wim Wenders, Abbas Kiarostami, Theodoros Angelopoulos, Youssef Chahine, Raymond Depardon, Vicente Aranda, Francis Girod, Hugh Hudson, Ismail Merchant, Claude Lelouch, Lasse Hallström, Cédric Klapisch, Régis Wargnier, Helma Sanders-Brahms, Patrice Leconte, Merzak Allouache, Andrei Konchalovsky, Jacques Rivette , Gaston Kaboré, Bigas Luna, Sarah Moon, Lucian Pintilie, Nadine Trintignant, Yoshishige Yoshida, Yimou Zhang, Gabriel Axel, Idrissa Ouedraogo) para formarem um projecto conjunto bastante peculiar. Cada um teria que trabalhar como os irmãos Lumière (usando o cinematógrafo), e teria que seguir três básicas regras - cada segmento fílmico não podia ter mais de 52 segundos, teria que ter apenas três takes e o áudio não podia encontrar-se sincronizado. A partir disto, dava-se completa liberdade artística (a pouca que restava) ao cineasta. É curioso ver como Haneke aproveitou a ideia para mostrar, mais uma vez e tal como é perfeitamente visível no vídeo que deixo em cima, ao espectador, umas das suas temáticas predilectas: a televisão, o universo que projecta e reproduz, a falsidade das representações imagéticas e a sua influência no ser humano.

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

A Pianista

O homem é um ser cujas necessidades primárias passam, de forma necessária e irredutível, pela sua sexualidade porquanto é hoje sabido e comprovado pela ciência. Tal como Haneke bem o sabe, vivemos, na actualidade, numa sociedade que extrapola os anseios carnais pela via do consumo de pornografia, seja esta directamente demonstrada ou não, e ainda que, de maneira ambivalente, o Ocidente condene os mais “perversos” (reforcem-se as aspas) actos sexuais. E é, a respeito disto, sob este fantasma intocável da dissonância cognitiva com que navegamos, que o cineasta austríaco aproveita e se insurge com “A Pianista”, uma excelente reflexão (excessivamente?) intimista sobre os nossos mais secretos desejos.

É a plácida e requintada melodia de Schubert que nos apresenta — expõe — a nossa protagonista, magnificamente encarnada por Huppert, que se entrega à máxima representação da procura pela libertação e consumação das suas vontades. Grandemente provocador, podemos considerar que temos sobre nós um minucioso estudo psicanalítico de personagens e, como já nos é habituado, um estudo sociológico do contexto específico que as envolvem. Porque para a constituição de uma dada personalidade, tudo se mostra determinante (daí podermos considerar o cuidado na montagem de cenário estético), sendo que Haneke vê e recria a realidade como uma ficção verdadeira e complexa onde, não sendo coerciva à individuação pessoal, coabitam diversos e caóticos elementos socioculturais e individuais grandemente influenciadores do recalcamento (ou não) de certas atitudes, sejam estas perspectivadas a nível sexual ou não. Tudo em “A Pianista” é efectivo, plausível, certo — a sua actualidade e crueza não se devem apenas à história e criatividade pessoais do cineasta, mas sim a estudos externos, corroborados, como os que nos deixou o fundador da psicanálise. Freud é, portanto, uma figura que se encontra invisível nesta derradeira (feliz ou infeliz?) jornada, ou, para sermos mais precisos, os estudos que este nos deixou sem os quais o austríaco não se poderia basear e completar uma análise tão precisa do sexo e das, mais uma vez as aspas, “depravações” consequentes, criadas, à sua maneira, por cada agente activo nesta sociedade em que vivemos, repressora daquilo que considera ser tabu e proibido. Não é, certamente, pela via da visualização de cada imagem, simples e desinteressada, que chegaríamos ao âmago de uma protagonista tão inquietante e controversa (sê-lo-á, para nós, porquê?), até porque a dura e inflexível exactidão estética e narrativa não o permitiria, de todo, obrigando-nos a estar, permanentemente, frente ao “ego” dela. É, pois, através da interpretação ulterior que mergulhamos e analisamos, enfim, o inconsciente da personagem, no qual submerge parte do seu “superego”, resultado das imposições morais aprendidas numa sociedade orientada por paradigmas, representações e estereótipos, que guiará as acções de cada um de nós. É exactamente esta parte do eu que refreará os nossos anseios e prazeres, biológicos e obviamente naturais, que calámos pelo medo que já nos é intrínseco e foi interiorizado. Que podemos nós julgar ou acusar do sadomasoquismo que dá a alguns tanto prazer e qual o nosso direito e legitimidade de considerarmos depravados e insanos àqueles que têm fetiches e satisfazem o desejo sexual sem quaisquer ambições de construir uma relação de outra espécie (amorosa, por exemplo)? A pianista mostra-nos, distanciando-se cruamente da sociedade (representada pelo aluno, pela escola ou pela mãe) e acabando por não antever com tanta facilidade as suas reacções, a simplicidade e singeleza dos desejos que tem em si, não passíveis de serem julgados por nada ou ninguém, compreendidos apenas pela suave modulação e inclusão metafísica que a música lhes proporciona. Ser professora da matéria em questão não é mais senão um grito inaudível a uma massa acrítica e preconceituosa, pronta a apontar o dedo para tudo o que lhe parecer estranho.

Nunca um filme aparentemente tão imoral, voyeurista e frio pareceu tão consciente das fragilidades das convenções éticas, tão crítico e tão humano. Porque “A Pianista” é, tal como outros da filmografia do autor, uma importantíssima película que explora, sem impor qualquer mensagem e de forma centrada e excelsa, a naturalidade daquilo que biologicamente ansiamos e a nossa verdadeira condição no mundo. 

9/10

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Uma brincadeira perigosa


Eis como, em jeito de reconto, Haneke debela a sua marca mais representativa (o realismo) e o formalismo da linearidade temporal naquela que é uma das cenas mais críticas, emblemáticas, provocantes e famosas da sua brilhante carreira. Múltiplas são as conclusões que podemos daqui retirar: a mais óbvia será, na minha perspectiva, a demonstração de como se intromete na sociedade contemporânea, pela via da comunicação social e do próprio cinema, um voyeurismo insaciável e uma desesperada procura pela violenta e triunfal vingança do mal sobre o pouco bem que resta no ser humano.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

E porque ninguém leva a mal...

Lançado, a preço mínimo, na passada sexta-feira com o jornal Público, “O Meu Tio”, de Jacques Tati, não podia ser visto em melhor altura como esta, a do Carnaval. Requintadamente escrito, planeado e coreografado (o que é poupado em diálogos é enriquecido por concretas acções), trazendo-nos uma moderna e ainda actual crítica ao mundo tecnológico, e bem interpretado, este filme emana toda uma nostálgica magia, despreocupação e encanto pela vida como naturalmente ela é. É um recordar à inocência e às brincadeiras repreendidas de criança, uma homenagem aos inadaptados às actuais “modernices”, aos que anseiam a completude na pura simplicidade. Divertido e, sobretudo, verdadeiro, “O Meu Tio” é um título sem dúvida a memorizar, a ver e a rever. A todos os leitores desejo, pois, um bom dia de Carnaval.

domingo, fevereiro 14, 2010

14 filmes para o dia de São Valentim

Sendo hoje dia de São Valentim (ou dos namorados), apresento hoje uma lista de catorze sugestões cinematográficas para este domingo. Tentei mantê-la variada e versátil: filmes para todos os gostos, sejam eles mais indicados para ver ao lado do(a) parceiro(a) ou mesmo sozinho. A qualidade, posso garanti-lo, existe em todos eles. Desafio também a todos os leitores para nos deixarem sugestões de romances propícios para este dia tão peculiar!

Chaplin, no corpo do corajoso vagabundo, perde-se de amores por uma florista cega — assim se constrói o mote de um dos mais brilhantes filmes de sempre, a obra-prima do cineasta norte-americano que, tendo um dos melhores finais de sempre, conseguiu redefinir e fundir a comédia com o romance, na sétima arte.
Um épico e clássico romântico sem precedentes, necessário e influenciador, exemplo maior da globalização, que colocou Victor Fleming no patamar de um dos maiores cineastas de sempre.
Magistralmente escrito e interpretado, “Casamento Escandaloso” constituiu-se como um excelente exemplo de como uma comédia romântica pode ser construída com o objectivo de roubar ao espectador grandes gargalhadas e sem cair nas banalidades que afundam as actuais salas de cinema.
Um dos maiores trunfos de Woody Allen e Diane Keaton, que juntos embarcam num neurótico, cómico e penetrante romance, captando, tal como em “Manhattan”, a essência nova-iorquina das contemporâneas ligações amorosas.
Terrence Mallick é o mestre da subtileza, captando a ardente e proibida relação amorosa das personagens de Richard Gere e Brooke Adams com uma sensibilidade e quietude extraordinárias. Um brilhante exercício de cinema, com espantosas fotografia e linha narrativa, que, mais do que visto, merece ser sentido.
Gus Van Sant consolida, neste grande filme que viaja entre o experimentalismo simbólico, os temas que mais o fascinam na urbe contemporânea, criando uma importante obra de culto LGBT e um romance que eternizou River Phoenix e Keanu Reeves.
Ang Lee, que viria a realizar o puro e sensitivo romance “O Segredo de Brokeback Mountain”, realizou, em 1993, o precedente e hilariante “O Banquete de Casamento”, uma comédia moderna e socialmente crítica que trata o casamento por conveniência de um homossexual coreano residente nos EUA, de forma a manter as aparências aos seus conservadores pais. [crítica]
“Pocahontas”, recontado pelas produções da Disney, não é mais do que uma brilhante alegoria e ensaio sobre a aceitação, a diferença, o multiculturalismo, o amor sem fronteiras, com poderosas mensagens ecológicas e humanistas transmitidas com um sensacionismo imagético e sonoro imbatível e de necessária visualização.
Um dos maiores romances cinematográficos recentes pertence a Kar Wai Wong que desconstrói uma linguagem que lhe é própria, narrando brilhantemente as imposições morais que se intrometem na relação de duas pessoas casadas que, juntas pelo mesmo motivo, acabam por lutar contra este, quando a barreira invisível que aos dois separa se torna insustentável.
Sob o espectro de uma magnífica banda sonora, “Garden State”, escrito, realizado e protagonizado por Zach Braff chega-se-nos como uma comédia romântica “indie”, apartado de um universo de películas teen superficiais e desprovidas de conteúdo. Repleto de imagens emblemáticas do amor, da liberdade, da vida e da morte, Braff e Natalie Portman representarão um dos mais adoráveis casais vistos na grande tela.
Um dos dramas românticos mais freneticamente originais e fantásticos do cinema, primando, mais do que qualquer outra coisa, pelo brilhante argumento recheado das desventuras próprias do sonho, aliado às interpretações inesquecíveis de Winslet e Carrey.
O luto de um amor perdido, a pluralidade das expressões da intimidade e da sexualidade do ser humano e a inadvertida descoberta de uma nova ligação romântica numa sociedade regida pelas instituições e por normas informais que rejeitam o poliamor, a liberdade relacional e as orientações sexuais minoritárias. Tal como “Rent” ou “Os Sonhadores”, de tudo isto trata o musical francês, arrojado e melindroso, de Christophe Honoré. [crítica]
Uma chamada de atenção necessária para os novos casais e um belíssimo ensaio sobre o compromisso, a rotina e a durabilidade de uma relação amorosa. Com o magnífico olho de Sam Mendes, Kate Winslet e Leonardo DiCaprio unem, de forma madura e invejável, esforços após o épico “Titanic”, trabalho que merece ser analisado até termos a ideia de que não é com um dia só, como o de São Valentim, que as relações deverão subsistir. [crítica]
O mais recente “indie” romântico coaduna tudo o que é preciso para o tornar numa obra maior e inovadora — um boy meets girl disfuncional, infeliz e a fugir aos convencionalismos (pelo menos os mais evidentes). O amor não correspondido e a fábula do esquecimento: eis o que 500 dias de paixão, dor e amor conseguem fazer, construindo a verdadeira comédia da vida.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

A Zona

É sabido que a dor da morte, nas suas múltiplas facetas, é universalmente sentida. Tal não significa, porém, que seja expressa da mesma forma — e a primeira longa-metragem de Sandro Aguilar comprova isso mesmo, reconhecendo, com um pessimismo e (sur)realismo exacerbados, o luto mecânico e subjectivo pelo qual o homem da contemporaneidade atravessa, bem como a sensação de vazio que lhe está inerente. E, nessa tarefa, o realizador português é, crua e simplesmente, admirável.

Entender, por completo, a gramática poética e a lógica tão realista quanto onírica do filme pode parecer, pelo menos inicialmente, uma tarefa difícil de se atingir. É, contudo, nesta espécie de desafio cognitivo, que grandemente nos envolvemos naquela estranha linguagem formal e entramos n’A Zona, ou a íntima área do nosso subconsciente, medos e desejos por excelência, onde verdadeiramente reside a invisível metafísica. Rejeitando grande parte dos tradicionais convencionalismos formais e de narrativa, a fita, altamente sensorial, navega num oceano recheado de fortes, duras e metálicas imagens e sons. E é isso que o torna, na sua essência, sublime — cada cena, do início até o final dos créditos, é crucial. Quando o Tudo chora o Nada, torna-se por demais substancial atentar, com minuciosa atenção, as personagens espiadas e com quem vagueamos, os simbolismos que presentes estão, sejam estes imagéticos e físicos ou não. No azul introspectivo e belíssimo de Paulo Ares que, em jeito de devaneio solipsista, mergulha quase a totalidade dos cenários, viajamos numa terra de ninguém, de quem está perdido, desde a nascença, na imensa dor do luto e do medo da morte, de quem quer gritar e soltar a própria fúria canina, animalesca e, sobretudo, livre. Porque é, efectivamente, por isso por que lutam as nossas personagens anónimas, sem se quererem entreolhar e tocar, alimentando um frio inesgotável — pela liberdade e pela vida que a Natureza lhes tentou propiciar antes de o homem se confinar a um mundo de sufocante artificialidade e anestesia, onde se impõem a tecnologia, a máquina hospitalar e, mais do que qualquer outra coisa, a intelectualização de tudo quanto é de transcendente e incompreensível à sociedade, no estado em que se encontra. E, entretanto, também se engrena, irreversivelmente, a impossibilidade de contrariar o maior devir de todos, o da passagem do tempo, representado pela lenta e rígida viagem do comboio. Aos nossos protagonistas, espectros errantes que se unem e desunem descontinuamente em planos pictóricos e instituições sociais, caberá a tarefa de sobreviver um dia mais e de não se consumirem em si, na embriaguez que quase dá término à película. Esta acaba, sim, com um conforto visual para o espectador petrificado — o recordar da Natureza, quente e verde, no seu estado duro e puro, que não poucas vezes ignoramos.

Encontramo-nos perante a zona, que acolhe e que liberta, uma verdadeira gema da sétima arte nacional que, sem qualquer sombra para incertezas, não deve ser passada ao lado, pela sua extraordinária sensibilidade e genialidade quase perfeitas.
9/10

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Expiação

Recuemos uns poucos anos atrás no tempo e recordemos como, posto em termos cinematográficos, o ano de 2007 ficou, decididamente, assinalado por uma espécie de hipnotismo e deslumbre, certo é que não generalizado, pela tour de force comandada sob a égide de um pequeno grande cineasta britânico chamado Joe Wright. Se alguns, inseridos no meio aparentemente especializado, o consideraram um feito que, sendo visualmente ambicioso, se perdia numa sentimentalista, frustrante e estereotipada colagem de cenas, outros viram no filme um poderoso e belíssimo acontecimento artístico, que marcaria o meio durante anos. Nomeado e premiado com distintas estatuetas, facto é que a adaptação do romance literário de Ian McEwan contou com catorze nomeações para os BAFTA, tendo destes ganho os prémios de melhor filme e melhor design de produção; sete nomeações para os Globos de Ouro, vencendo os de melhor filme dramático e melhor banda sonora; e oito nomeações para os Óscares, levando para casa apenas o de melhor banda sonora. A razão pela qual considero que a película deve, pois, ser reconhecida a nível global, e que tentarei esclarecer de seguida com esta análise, prende-se com uma simples, ainda que potencialmente controversa, evidência pessoal. “Expiação” é, autenticamente, um dos melhores romances alguma vez produzidos para cinema.

Deixemo-nos levar numa viagem no tempo e no espaço e abramos os olhos no dia mais quente do Verão de 1935, aquecendo um escape à cosmopolita capital de Inglaterra, que se encontra na iminência de uma segunda e nova guerra à escala mundial. O cenário, imaginado pelo escritor britânico que já nos trouxe obras como “O Sonhador” (crítica), “Primeiro Amor, Últimos Ritos” e mais dez romances, e reproduzido e adaptado pelo açoriano Christopher Hamtpon, será decisivo para contextualizar o leitor / espectador do crime que será cometido e do término de uma invisível fusão que haveria entre dois diferentes planos da narrativa. No primeiro deles, encontrámos a solitária Briony Tallis, uma sonhadora mas desencantada rapariga de treze anos que ambiciona atingir a grandiosidade dos grandes escritores e que vive sufocada pela banalidade, monotonia, pela atenção da família de classe alta, rígida e atenta nos seus códigos normativos e pela incompreensão dos primos em relação ao seu precoce trabalho de ficção literária. No segundo plano, temos a sua irmã, Cecilia Tallis, e o filho da criada da família, Robbie Turner, amigo de infância, que voltou há pouco de Cambridge. Neste dia, o mais quente da estação presente como dissemos, a vida dos três, que se interligarão de maneira irreversível, mudará para sempre. O deslumbramento que envolve os momentos precedentes ao crime que será cometido é tremendo mas o mais interessante é denotar a evidência de um espectro contínuo que é disforme para os nossos três protagonistas: se Cecilia se despe e mergulha naquela fonte parada, para ela será pela necessidade de mostrar a contida frustração de uma ligação romântica que nunca o chegou a ser, para Robbie será pela mostrar a clarividência dos seus erros e descuidos, para Briony será pela obrigação sádica e manipuladora do homem pelo qual nutre a sua primeira paixoneta tornando-o, assim, mais vil e merecedor de atenção que nunca. Qual, destas três, será a verdadeira realidade? Nenhuma — pois o que se pretende mostrar é a subjectividade da assimilação empírica de uma mesma “verdade”, e mostrar a relatividade da interpretação de um mundo físico (qual a nossa legitimidade de considerarmos que este existe?), tornando-o repleto de representações e transfigurações colectivas e dogmáticas, que raramente (ou nunca) baterão certo. Tudo é apreendido conforme o jogo recíproco de expectativas e as pessoais impressões de cada personagem, cuja dinâmica psicológica cairá, numa trágica inevitabilidade, num choque de passadas certezas incertas, passe-se a redundância, que jamais coincidirão. Estamos perante a plena harmonia no pleno caos. A dúvida é a origem dos piores equívocos e é interessantíssima a forma como o próprio e inactivo espectador se torna agente de um engano grupal, na recta final da película. Somos arrastados, ainda que advertidos por subtis imagens, para uma errada suposição, uma que levaria para um final feliz para o casal sobre o qual nos debruçámos mas rapidamente descobrimos que nos mentiram. A pergunta é: será válida a frustração que por aí advém, a vitimização pessoal por cairmos na imaginação do artista? Não procurámos nós, a ver o filme, a ficção, a irrealidade, uma mentira? Por que motivo reclamamos um engano se nos deixamos enganar? De qualquer das maneiras, caso a dúvida não existisse (pelo menos na totalidade), poderíamos presumir que Robbie e Cecilia elevariam a tensão existente entre os seus desejos escondidos e recalcados para um desenvolvimento mais natural e saudável da sua relação, pois estariam já entrevistos dos sentimentos de um e outro, tal como deduzimos, mais do que qualquer outra coisa, que a (não tão) inocente Briony não se orientaria pelo impulso, pelo ciúme e pelo anseio de protecção da irmã e não cometeria o seu maior erro, separando o nosso casal protagonista para o resto da vida, pois se habituaria, entretanto, da relação dos dois. A dimensão trágica acarretada por uma simples, pequena suposição é magistralmente retratada já que o estudo do contexto e do âmago do interior das personagens, coadunados, propiciarão o desenrolar da segunda e mais objectiva parte da obra. Convém, por isto, relembrar antes outro elemento simbólico de grande importância, tal como é o da fonte: a carta, sem a qual nada disto teria também acontecido. Aqui, navegamos num universo de “ses” — se Robbie nunca tivesse partido a jarra, escrito uma carta e entregue a errada, se Briony nunca tivesse lido a carta de Robbie e o visto com Cecilia na biblioteca, se Cecilia tivesse aceitado conversar com Robbie, enfim, “se tudo” então nada seria perpetrado e teria ocorrido ou, melhor dito, tudo se sucederia de forma diferente, possivelmente para melhor. Esta teoria da causalidade, demonstrada bem em películas como “Irreversível” (Gaspar Noé), está aqui bem presente: dela subsistem as memórias da escritora, transpostas na película desde que prepara a sua “primeira peça” até os seus últimos dias. Será esta interminável relação entre uma causa e um efeito que a perseguirá até o leito da morte, reavivando a culpa e a vergonha interiores que crescerão progressiva e dolorosamente. A reparação, tema central que dá título à obra, será feita ao mesmo tempo na procura constante do atenuar da culpa, da absolvição pelo pedido de perdão e pela ajuda a terceiros (daí Briony se ter tornado enfermeira). Culminada num trabalho de ficção que procura a consolidação de uma inexistente felicidade, a expiação do espectro que é a nossa fascinante protagonista nunca será, totalmente, completa, pois a procura de remissão moral terá, pelo castigo do tempo, duras impossibilidades de ocorrer. É, portanto, nisto tudo que o filme prima: pelo retrato de uma grande história de amor, com o reavivamento dos clássicos obstáculos, pela descrição social de um mundo afundado em divisão de classes e em guerras ideológicas e escusadas, pelo ensaio moral sobre a culpa, a redenção e o perdão, pela reflexão filosoficamente poderosa da causalidade e da impossibilidade de lutarmos contra o tempo, inimigo comum de todo o ser humano.

Aliar uma narrativa tão complexa e rica em detalhes merecedores de uma atenção acrescida a uma técnica igualmente brilhante seria, à partida, uma tarefa herculeana, mas Joe Wright fê-lo, a aplaudimo-lo com veemência. Sendo a sua segunda longa-metragem depois de outro filme de época e adaptação literária (o primoroso “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen) e antecedendo um terceiro que formal e narrativamente foge de si (“O Solista”; crítica), podemos afirmar, e bem, que o cineasta inglês impôs um estilo próprio, no âmbito sobre o qual se debruça, o da realização. A tarefa de liderar e captar o interior dos protagonistas (magnificamente representados por Keira Knightley, James McAvoy, Saoirse Ronan e Romola Garai) produziu-se através da frequente recorrência em metáforas e simbolismos visuais, uns para completar uma narrativa não inteiramente verbal, outros para servirem de escape privado do realizador da própria produção fílmica (as andorinhas, como ele próprio o afirma, estão presentes esporadicamente para divertir o espectador mais concentrado). Contrastando com perfeição estética todo o caos e drama vividos, Wright é o cozinheiro de um festim para os olhos, de maneira a deliciar o maior público — com um olho modelar e seguido dos cânones e uma fotografia belíssima (encarregue de Seamus McGarvey, director de fotografia d’As Horas), o cineasta aproveita para introduzir uma das suas mais admiráveis marcas: os takes longos e harmoniosos. Será sempre uma absoluta dificuldade descrever os cinco minutos da praia em Dunquerque, por onde Robbie e os soldados ingleses deambulam, vendo a morte e a esperança cantarem de mãos dadas numa mórbida e encantadora felicidade, agarrados ao fim de mais uma guerra. A certeza que existe é uma: a que estamos, aqui, perante uma das melhores cenas filmadas para a grande tela de sempre. 

Meditado o universo pictórico, tempo é de fechar os olhos e deixar que a mente concentre esforços na poesia sonora de Dario Marianelli. Ousado e inédito, o compositor italiano, que participa pela segunda vez com o realizador, utiliza a máquina de escrever como se de um instrumento musical se tratasse, iniciando o filme com a música Briony, uma sequência frenética de sons apressados que, por si só, reflecte a personalidade da figura desconhecida que nos é apresentada. A máquina de escrever, conjugada com um grande jogo melodioso com violinos, é também introduzida noutros momentos, apenas de grande tensão, como podemos ver em músicas da banda sonora como Come Back, na sua recta final, terminando numa violenta e gélida música de órgão, ou em With my Own Eyes e Cee, You and Tea O destaque vai, claramente, para três músicas: Love Letters, que lembra um jogo romântico entre o piano o violino, assustadoramente pesaroso e, ao mesmo tempo, apaixonado, Farewell, que inclui o tema principal de Robbie e Cecilia e que resume, na sua essência, o filme (músicas que se lhe seguem, como The Cottage on the Beach ou Atonement seguem a mesma linha lógica referida), e Elegy for Dunkirk que, consensualmente, tal como a cena anteriormente caracterizada, é a melhor de toda a banda sonora. No que poderia ter resultado apenas num vulgar e elementar conjunto de notas melódicas que facultassem, ao espectador e ouvinte menos rigoroso, o mínimo de comoção geral (ao nível emotivo mais comum nos filmes romântico-dramáticos), o melindroso e genial Marianelli cria uma autêntica montanha-russa de sensações auditivas que, com as notas que se vão entrelaçando, apesar de melodramáticas, resultam numa magnificência musical que levou aos nossos ouvidos um trabalho intemporal e sinceramente memorável.

Daí toda a urgência e necessidade em ver e rever esta refulgente e sublime película, uma das melhores alguma vez apresentadas, pelo casamento perfeito entre a narrativa e a técnica, elevando-a ao inegável estatuto de clássico e de obra-prima.

10/10

sábado, fevereiro 06, 2010

Benny's Video

A feature film is twenty-four lies per second — quem o disse foi Michael Haneke, numa saída anti-Godard (“la photographie c'est la vérité, et le cinema c'est vingt-quatre fois la vérité par seconde”), sobre o cinema em geral e, como consequência directa e assumida, sobre o seu próprio cinema. A sétima arte é a mentira menos escrupulosa de todas, (algo que bem é explorado com filmes como “Brincadeiras Perigosas”, dele, ou “Expiação”, de Joe Wright), por transmitir, intensamente, uma irrealidade intersubjectiva que não se preocupa em deter o espectador na sua ilusão tranquilizada. Perante a ficção, o fascínio e a fuga da banalidade e perante a procura do sadismo, da violência gratuita, do prazer mórbido e desumano da tortura, o cineasta “mente” tendo em mira o homem comum, feliz na sua ignorância e gosto perverso do horror. Será o facto de sermos espectadores de uma cena de violência e torturas físicas numa sala de cinema ou sentados confortavelmente no sofá a vê-la numa televisão quase tão condenável ao facto de sermos, por outro lado, agentes activos num acto de pura crueldade e impiedade? Para a isto responder, Haneke é concreto e objectivo, como, aliás, é toda a sua filmografia, crendo veemente e positivamente que sim, que inundado de material audiovisual cru e maldoso o homem contemporâneo se torna elemento de uma massa colectiva acrítica e imoral.

Para mostrar, contudo, a inexistência de rigidez deste comportamento desnaturado do ser humano e para, ao mesmo tempo, de alguma forma estranha e altruísta, desresponsabilizá-lo e mostrar que, feitas as contas, subsistem a bondade e (a apreensão da falta de) o bom senso, Haneke realiza “Benny’s Video”, criando um adolescente ocidental como tantos outros, com a particularidade de este ver continuada e primorosamente uma cassete de vídeo que mostra um vídeo, filmado por si, da matança de um porco. O seu quarto equipado de televisores, leitores de vídeo e câmaras de filmar torna-se o antro de um voyeurismo extremo — Benny filma-se recorrentemente e vê a sua imagem reflectida no ecrã preferindo a representação secundária à verdadeira (haverá uma?) —, um quarto que para o jovem passam histórias de sangue, acção e adrenalina alugadas no Blockbuster mais próximo, até o local se tornar palco de um homicídio, passando a realidade e a dureza da Morte a ecoar nas suas paredes e nas da mente dele. É Benny que, num puro acto de acometido experimentalismo e curiosidade clínica, assassina uma rapariga mais ou menos da sua idade, sentindo o culminar de todo o poder de uma arma, de um assassino, de uma vítima, da supressão vertiginosa da Vida. O assassínio que, claramente, não o seria não fosse a influência determinante e trágica dos filmes e programas televisivos tumultuosos (quantos casos mortais e trágicos, anualmente, não passamos a conhecer que advêm disto mesmo?), provocará um evidente arco de mudança na personalidade de Benny e nas suas atitudes. O tédio, tema central nos filmes de Haneke, é terminado, oficialmente: se n’O Sétimo Continente (crítica), a desencantada família se suicida por reconhecer a insignificância e o tédio da vida, em Benny’s Video, o seu valor e efemeridade, tal como o poder orgásmico de tirá-la a alguém, põem termo ao fastio de subsistir entre os muros urbanos. Benny (ou, diremos para nós, a adolescência) está traumatizado, não o sabe e nem as suas capacidades resilientes próprias do ser humano poderão ultrapassar o sucedido. A violência prazerosa usada para criticar toda a restante na sociedade será tão perturbante quanto um dos filmes preferidos de Haneke (“Salo ou os 120 de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini). Tudo isto, incluindo a forma de lidar dos pais do adolescente, transmite um inegável realismo (passe-se o paradoxo, conforme analisámos), que torna esta obra de arte fundamental e necessariamente importante.

O argumento (não tão contemplativo como o posterior e espontâneo “Elephant” (crítica), de Gus Van Sant, que se esforço para atingir a verdade, e que trata a influência de novos meios como o computador e os jogos violentos), é reflectido também no carácter formal da realização: os longos e parados planos remeter-nos-ão para o tal prazer sádico de espiar alguém de que falámos, algo que Haneke tão bem tratou com o seu “Caché - Nada a Esconder” (crítica). O austríaco vive, do princípio ao fim, fascinado pela vídeo-realidade, penumbra de toda a sua precedente carreira e que o preparou para um dos mais duros ensaios sobre a instrumentalização das atitudes, em todas as suas componentes, em função do televisor, agente socializador que se tem, verdadeira e preocupantemente, imposto no mundo moderno.
8/10

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Manifestações de Manifestações


Estava nas minhas tão habituais andanças pela internet quando, de repente, me deparo com algo que... não sei se me chocou, mas revoltou. A minha primeira reacção foi uma gargalhada. Uma gargalhada forte, causada pelo ridículo da situação. Não vou deixar-vos mais na expectativa, vou dizer-vos de que se trata: no dia 20 de Fevereiro, em Lisboa, decorrerá uma Manifestação... não pelo Casamento e pela Família, como lá dizia, mas sim contra o Casamento e a Família, já que atinge parte dos mesmos. O ridículo começa logo no nome da iniciativa. Depois de ler o título e de perceber do que se tratava resolvi ler o manifesto. Passo a mostrar e a responder.

MANIFESTO
Quem faz a Família?
(Não há um só modelo de família. Esta pergunta é equivalente a perguntar "quem faz uma banda?". Há bandas com baterista, com guitarrista, com trompetista... outras têm um vocalista e um violinista... Depende. Uma criança e o seu avô, um homem e a sua esposa, um filho e uma mãe, um homem e o seu marido, uma senhora e a sua sobrinha cujos pais faleceram, uma mulher com um filho legítimo e outro adoptado... Um pai, uma mãe, a avó que anda de casa em casa e um filho... Ou aquele casal que não pode ter filhos mas que nem por isso deixa de se unir... Ou aquele paraplégico e a sua esposa que foi obrigada a adoptar visto que as condições do marido não o permitiam reproduzir-se. Querem mais exemplos? Há infinitas combinações... Para quê tentar um golpe de marketing baixo, uma manipulação foleira, tentando impingir que existe apenas um modelo de família?)
 
Quem educa as crianças?
(Voltamos à mesma história. Quem educa as crianças? O pai, a mãe, o avô, a avó, a tia, o tio, a mãe adoptiva, o pai adoptivo, a prima afastada que adoptou, a vizinha do lado ou a ama porque a mãe não tem tempo... depende... depende de família para família, nem sempre existem todas estas pessoas e não há um padrão absolutamente necessário. Senão podíamos fazer marchas já há muito tempo, e tirar as crianças aos pais solteiros, às mães solteiras, às avós que ficaram com os netos, aos tios que adoptaram... Nenhum deles é um pai e uma mãe, num seio em que não há violência nem factores perturbantes. Famílias destas existem 1% e é uma vez por semana que se dá este fenómeno de "seio saudável".)
 
Quem faz o Casamento?
(Ah, esta é fácil: duas pessoas que se amam. Antigamente um preto e um branco não era um casamento. Um rico e um pobre... ui, casar?! Tudo isso mudou, porque o objectivo do casamento é homenagem ao amor, a união entre duas pessoas que se amam.)
 
Quem constrói a solidariedade?
(Acho sempre piada a estes truques de (tentativa de) manipulação. Uma pessoa ao ler este manifesto vai estando convicta do que lê, pois as premissas parecem reais e verdadeiras, e no meio aparecem coisas que não têm nada a ver mas que, inconscientemente, nos ficam na cabeça. Quem faz a solidariedade? Resolvi pesquisar no dicionário o significado da palavra "solidário", para perceber se estava a entender bem ou se era do meu sono. Pude ler "Que tem interesses e responsabilidade mútua." Hum, não, afinal eu estava a entender bem: isto está mesmo descontextualizado e não tem nada a ver com o assunto. Quem constrói a solidariedade é todo e qualquer cidadão (independentemente de cor, tamanho, orientação sexual, cor do cabelo, estupidez natural ou tamanho do nariz) que tenha um acto de solidariedade. Um gay não é solidário só porque gosta de homens? Onde está a falta de solidariedade aqui?)

Quem aposta na maternidade e na paternidade dignas?
(Depois da manipulação fraca surgem os insultos. Típico de um discurso sem fundamentos. Hum... eu aposto numa maternidade e numa paternidade dignas. O meu pai e a minha mãe também. Os meus colegas também. E professores. E amigos (heteros, gays, assexuados...). O que é que isto tem a ver com a adopção por pessoas do mesmo sexo? É pouco digno? Se fossem de sexos diferentes mas existisse um mau ambiente familiar, se fosse apenas uma pessoa, se fosse uma adopção por um casal heterossexual... contra isto não há marchas. Nunca vi uma contra a violência dentro das famílias, por parte destas tão preocupadas pessoas.)
 
Quem ensina nas escolas?
(Posso rir-me? Obrigada. Quem ensina nas escolas? Os professores. Uh, boa. E mais? Há professores altos, gordos, ruivos, morenos, heterossexuais, barrigudos, gays, casados, solitários, irresponsáveis, responsáveis, engraçados... Mais características? E não é o facto de um professor meu gostar de uma mulher ou de um homem que muda a forma como ele me ensina matemática, português, biologia ou química...)
 
Quem trabalha e gera riqueza?
(Ok, agora os gays não trabalham. Esta pergunta acho que era retórica.)
 
Quem faz a história?
(As pessoas... entre elas, gays. Os homossexuais são pessoas. Existem na sociedade. Têm tanta intervenção nela como os outros. Gostar de homens ou mulheres não muda nada disto.)
 
Quem decide o Futuro da Sociedade?
Tu e Eu. Homem e Mulher.
(Boa! Concordamos! Eu, tu. Homens e mulheres. Qualquer que seja a relação entre eles!)

Queremos manifestar:
Que o casamento é entre um Homem e uma Mulher.
Que cada criança tem direito a um Pai e uma Mãe.
(Volto a pedir-vos que vão dizer isso às crianças que só têm um pai ou uma mãe. Ou que vivem com os avós. Todas estas minorias fazem a maioria das crianças. Posso dar um exemplo concreto: no ano passado, na turma da minha irmã, só ela e um amigo é que tinham os pais juntos. Os outros colegas tinham os pais separados... e sofriam muito com isso. E, atenção, eram HETEROSSEXUAIS. Vamos fazer uma marcha contra isto?)
 
Que a FAMÍLIA faz a Sociedade.
(Sim, concordo, quaisquer que sejam os elementos que a constituem.)
 
Que a maternidade e a paternidade são valores sociais.
Que os Pais têm o direito à liberdade para educar os seus filhos.
(Pena que a maioria não usufrua dela. Há quem queira usufruir e não lho permitem.)
 
Que a solidariedade nasce, em primeiro lugar, na Família.
(Conheço tantos gays solidários como heteros. Volto a perguntar: o que é que tem a ver?)
 
Que a Escola ensina, ajuda e apoia as famílias.
(Sim, é verdade... os professores gays são tão capazes como os outros.)
 
Que a primeira escola de vida é a Família.
(E é aí que deve começar-se a incutir valores como o AMOR, a TOLERÂNCIA e o RESPEITO. E não a tradição cega.)
 
Que a riqueza de um País está nos Homens, nas Mulheres e nas crianças.
(Sim, quer se apaixonem por homens ou por mulheres.)
Que a história é escrita por homens e mulheres e não pelo Estado.
(Homens e mulheres que têm intervenção no Estado.)
 
Que o Futuro da Sociedade, em democracia, é escolhido pelo Povo.
(Sim, que escolhe um representante. Se existissem referendos para cada lei...)
 
Que o Poder respeitará a cultura e a vontade da maioria.
Que a cidadania se exerce.
(Verdade! E que tal começarem a votar nas eleições? É que querem tanto exercer uma cidadania... onde? Não sei. A abstenção ganhou.)
 
Por isso, nós Mulheres e Homens Livres de Portugal temos o direito a decidir,
pelas Crianças, pelo Casamento e pela Família.
Família e Casamento exigem o Referendo!
Nunca vi tanta gente preocupar-se com a família. Agora vejo bêbados que batem na mulher e nos filhos a dizerem que "os paneleiros vierem estragar o conceito de família" e que "os putos não podem ter dois pais que isso não lhes faz bem à mioleira." Alguém que saiba e compreenda o que é uma família, os valores que lhe devem ser inatos, os pilares necessários para um crescimento saudável e, mais importante que tudo, que reconheça que o elemento básico é o amor... não pode estar contra isto. E o mais engraçado é que a hipocrisia dos portugueses é enorme. Assinam petições para que haja referendo sobre o casamento homossexual, dizem que o povo precisa de voz! Mas quando chega a hora de votar, nas eleições para eleger um representante que toma este tipo de decisões, como envolve outro tipo de responsabilidade... ganha a abstenção. No mínimo contraditório...
Preocupem-se com os casais que já têm filhos. Esses sim, não estão a fazer bem o seu papel. Não queiram desviar as atenções... As escolas cada vez mais apresentam queixas ao Ministério da Educação devido às consequências da falta de educação que as nossas crianças têm. Concentrem-se naquilo que parecem defender com tanta convicção: a Família, as crianças. As vossas. Enquanto não lhes garantirem isso permitam que alguém trate do resto. Desviar as atenções é hipócrita.
Viva o Amor e a Família!

"O Banquete", Platão

O que define um clássico? Segundo que critérios determinamos o valor de uma obra e, consequentemente, a importância do seu autor? Será decerto uma questão de solução difícil, mas parece-me razoável que as repercussões a nível social geradas por um trabalho de arte, uma teoria científica, antropológica, gnosiológica, enfim, um produto da reflexão humana e um testemunho do seu engenho e capacidade de criação, constituam um auxiliar precioso na complexa tarefa de compreender a relevância de um pensador e dos seus escritos.

A consciência do enraizamento na forma de pensar e sentir da civilização ocidental - e não só - de nomes como Newton, Miguel Ângelo, Homero, Pitágoras ou Dante leva-nos a reconhecer-lhes grandeza, ou, pelo menos, importância, ainda que desconheçamos grande parte da sua obra. O mesmo acontece com Platão, geralmente: afinal, quem nunca ouviu algum conhecido seu utilizar a expressão "amor platónico" sem nunca ter lido uma página do filósofo grego? E é precisamente para percebermos em que consiste esse tal amor ou, melhor, amores, que se torna interessante a leitura deste "O Banquete".

Ora, pondo de parte o debate - sem dúvida interessante, como revela Pinharanda Gomes na introdução à obra presente na edição da Guimarães Editores - sobre os motivos que terão levado à tradução do título original para "O Banquete", ao invés de "O Simpósio" ou "O Convívio", encontramos neste diálogo platónico um grupo de personagens reunidas no dia seguinte à celebração da tragédia de Agatão, discutindo, após a refeição e por sugestão de Fedro, os méritos de Eros, cada um deles proferindo em sua homenagem um discurso laudatório. O relato destes discursos, obtemo-lo da boca de Apolodoro, que, por sua vez, o ouviu de um tal Aristodemo de Cidateneia, apoiante de Sócrates que esteve presente no simpósio onde foram realizados.

Fedro, o primeiro a discursar, considera Eros um dos deuses mais antigos e cita Hesíodo, entre outros, para o comprovar; da mesma forma, considera-o um dos mais magnâmios, louvando a coragem e a devoção que suscita nos homens por ele inspirados. Defende que, "se houvesse a possibilidade de formar uma cidade, ou um exército, composto somente por amantes e amados, obteríamos a constituição política ideal, pois teria por base o horror do vício e a emulação do bem e, se combatessem juntos, tais homens, apesar do seu reduzido número, poderiam vencer quase o mundo inteiro" e recorre a exemplos de figuras como Alceste, Aquiles ou Orfeu para demonstrar o apreço que os deuses sentem pelos actos cometidos em prol do ser amado, e termina afirmando aquilo que Mann na sua "Morte em Veneza" diz ser a ideia mais irónica jamais pensada, "da qual nasce toda a malícia e a mais secreta volúpia do desejo", isto é: "O amante está mais próximo dos deuses do que o amado uma vez que se encontra possesso de um deus".

O segundo discurso reproduzido é o de Pausânias, que salienta o facto de Eros ser inseparável de Afrodite e, dada a existência de duas Afrodites - Urânia, ou celeste; Pandémia, ou popular -, é forçoso que existam igualmente dois Eros - um popular, que inspira aos amantes vulgares sentimentos que eles devotam a mulheres e jovens sob o impulso da concupiscência, e um celeste, que inspira os amantes a admirarem, acima de tudo, o espírito do amado, uma vez que não participa da concupiscência. Acredita que o amor inspirado pelo Eros popular não é duradouro, uma vez que se baseia no amor da beleza física, que é desprovida de perenidade; por outro lado, o amor inspirado pelo Eros celeste, consistindo numa entrega por parte do amado com o objectivo de alcançar a virtude, ou a sabedoria, cuja aquisição o amante tudo faria para possibilitar, é honesto e belo, já que este gesto revela que o amado, no seu íntimo, estaria disposto a todas as complacências de forma a tornar-se mais justo ou sábio.

Eriximíaco, que lhe sucede, começa por abordar a influência de Eros na arte criada por Asclépio, a medicina, da qual é praticante, partindo, seguidamente e por analogia, para a influência de Eros nas estações do ano e na música, conservando a teoria da dupla natureza de Eros apresentada por Pausânias.

Segundo ele, a virtude da medicina, tal como a da música, é estabelecer a concórdia entre elementos inicialmente opostos (frio-calor, seco-húmido, no caso da primeira breves-longas, no caso da segunda) , de que resulta a harmonia. Uma vez que os dois Eros, embora se opondo, estão presentes em todas as coisas da natureza, a virtude, para ele tida como termo médio, consiste na obediência em justa medida a ambos, encorajando por Eros celeste a todos os que pretendam alcançar a sapiência e apreciando Eros popular com disciplina e precaução.

Recuperado do ataque de soluços que o impediu de discursar aquando da sua vez, Aristófanes argumenta que o amor é a ânsia de uma plenitude perdida no processo da separação da espécie andrógina, separação de que resultou a diferenciação entre o sexo masculino e o feminino e que serviu como o castigo que Zeus lançou sobre os homens por terem tentado escalar o céu - assim, dividindo-os em dois, tornou-os mais fracos, diminuindo a sua liberdade, sem perder o louvor que estes concediam aos deuses.

Como tal, o amor, na medida em que todos nós somos uma téssera incompleta, torna-nos possível um regresso à nossa natureza primitiva, una, através da realização das nossas aspirações amorosas, cuja natureza - hetero ou homossexual - varia conforme a constituição de cada um. Este regresso constituiria a felicidade suprema, e é por ser permitido que Eros, que nos conduz para a metade que perdemos e que nos pertence, que Aristófanes julga importantíssimo louvá-lo.

Agatão propõe-se a submeter o seu encómio ao método exacto da apologia, não seguido pelos oradores que o antecederam, que consiste, em primeiro lugar, em explicar a natureza do objecto, e, depois, os efeitos dele provenientes.
Adjectiva Eros como sendo o mais jovem, delicado e flexível, sendo possuidor, igualmente, da justiça, da temperança - uma vez que a aspiração suprema se resume a dominar os prazeres e as paixões, das quais o amor é superior -, da coragem - pois subjugou Ares, deus da guerra, considerado o mais corajoso - e da sabedoria - inspira a poesia, as artes, a pecuária... -, reiterando o dom de inspirar o bem não só aos homens, mas também aos deuses, inerente a Eros, glosando Homero para o caracterizar como aquele que dá "a paz aos homens, a calma ao mar, o silêncio aos ventos, o descanso e o sonho às inquietações".

Com efeito, Agatão descreve Eros como o mais belo, ao mesmo tempo que o apelida de amor da beleza; é a partir desta contradição que Sócrates, relembrando que se deseja e ama aquilo que se não possui, forma o seu discurso, todo ele uma evocação dos ensinamentos de Diotima de Mantineia, filósofa que serviu de tutora de Sócrates no tema do amor.

O discurso de Sócrates será, talvez, a parte em que o diálogo concretiza todo o seu potencial, pela forma como orador desconstrói a argumentação dos seus precedentes, ao explicar que Eros não é um deus, mas um demónio, isto é, um intermédio entre o humano e o divino, atribuindo a sua natureza multifacetada às suas origens genealógicas, uma vez que era filho de Pénia, a Pobreza, e de Poros, o Engenho, sendo, portanto, rude, desordenado, mas amante da sabedoria, uma das coisas belas.

Sustenta que Eros é, em suma, o desejo de imortalidade, afigurando-se essa a causa primeira de todos os actos por ele inspirados - o amor baseia-se no desejo de possuir o bem, e praticar o bem, por sua vez, significa conceber a beleza física - através da procriação, acto pelo qual o homem mortal contacta com a imortalidade e a assegura, de certa forma, através de uma descendência natural -, e a beleza espiritual - referindo-se esta aos poetas, aos criadores, tornando-se seus descendentes os seus discípulos ou os seguidores dos seus ensinamentos.

A ideia-chave do discurso de Sócrates, e talvez da obra de Platão, consiste na teoria de que o amor permitirá ao indivíduo através de um processo de lógica ascendente, transitar do sensível para o inteligível, do natural para o supranatural, processo esse que, iniciando-se na juventude, com o amor pela beleza física, se transformará na contemplação da beleza das acções, leis e ciências, culminando no conhecimento absoluto: a descoberta do belo em si próprio.

O diálogo termina, de forma inexpectável mas apropriada ao tema, com uma declaração de amor: Alcibíades, enamorado de Sócrates, descreve-o como uma figura venerável, corajosa, louvando-lhe a sabedoria, a temperança e a rectidão, bem como a astúcia.

"O Banquete", perpassado por uma deliciosa eloquência, fornece-nos material para aprofundada reflexão. Poderemos não concordar com tudo o que é dito, mas penso que a coerência da argumentação e a loquacidade dos interlocutores é, por si só, meritória. Constituirá, talvez, uma janela para uma Grécia clássica, antiga e distante, um vislumbrar da forma como essa civilização encarava o amor e as relações enter seres humanos. Aliás, será assim tão diferente a forma como o homem contemporâneo vê o amor, vinte e três séculos após a morte de Platão? O mundo mudou, evoluiu (não em todos os aspectos, infelizmente), e não faz sentido ler Platão sem ter em mente o contexto social e cultural da época; ainda assim, apesar de existirem passagens que, a nós, leitores de hoje, poderão soar algo descabidas, a verdade é que há algo aqui - como o há em todos os criadores dignos de referência - de transcendente, que continua a fazer sentido: e não é a intemporalidade o atributo comum a todos os clássicos?

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Anticristo

Se poderíamos, tal como foi já referido, considerar a expectativa como palavra de ordem relativamente a “Anticristo”, não tão facilmente poderemos classificar esta película, que percorreu nações rodeada de grande polémica, imediatamente após a visualização. É, muito provavelmente e ainda que de forma previsível, o principal e consensual efeito que o filme provoca — a sua capacidade transtornadora de nos abalar, confundir e de testar, até onde seria impensável, a nossa sensibilidade e julgamento. Surgindo numa maré de fitas niilistas, que deleitam o mais sádico (e comum?) espectador e que valorizam a gratuidade fácil do masoquismo e da morte, esta particular película (ou, melhor dizendo, o seu impacto) apresenta-se-nos como um anticristo socialmente avassalador e imoral, que alcança o que, desde o início, se propôs a alcançar: o choque, o espanto, o nojo. O provocador resultado não seria, pois, este, caso não existisse precedentemente um minucioso estudo, por parte do cineasta, da actual evolução da humanidade, tal como os códigos normativos que a têm regido durante gerações. Lars Von Trier é um cineasta frustrado que usa a sua obra para cuspir no actor social que é o espectador e perguntar-lhe, vezes sem conta, “porquê?”, denunciando-lhe a pequenez e estupidez que, aparentemente, lhe são característicos. O filme não é, desta forma, apenas anticristo. É misógino, anómico, contra-cultura, anti-tudo. Porém, cometeríamos, na pior das hipóteses, uma grave injustiça se o considerássemos desumano pois, neste caso, encontramo-nos perante um ensaio daquilo que o homem mais tenta recalcar e esquecer: o medo e a sua “pior” (quem decide?) personalidade.

Conjecturados os propósitos a que se propôs atingir o dinamarquês, a prática estende-se ao retrato de duas naturezas: por um lado, temos a normativamente designada pelo N maiúsculo, representada pelo bosque e pelos outros animais que lá habitam e representando o que há de mais recôndito e negro no mundo; por outro, temos, também, a natureza psicológica dos nossos dois protagonistas, um casal que lida, da mais atípica forma, com o luto de um ser humano no seu estado puro. Se, com a ninfomaníaca mulher (inesquecivelmente interpretada por Charlotte Gainsbourg, naquele que acaba por ser o papel da sua carreira), acompanhamos o enlouquecimento consequente de uma culpa e de uma depressão não verbalizados na totalidade, que se associará a uma espiritual, amedrontada e diabólica fusão com a floresta (a “igreja de Satanás”, diz ela), então com o marido psiquiatra vemos um evidente oposto ao simbolizar o racionalismo e a lucidez por vezes exagerada pelos demagogismos psicanalíticos que a sociedade foi formando na tentativa de esconder os seus maiores receios. O choque entre os dois, protagonizado por longas e obscenas sessões de sexo (o atenuar de uma dor maior), não poderia acabar da forma mais horripilante. Repleto de simbolismos históricos e religiosos dignos de investigação e reflexão, a dor, o desespero e o luto apresentam-se como os temas centrais de uma obra tão realista quanto onírica e espiritual (a cena final não o poderia ser mais), obrigando-nos, finalmente, a questionar a tese ontológica fundamental da fita: são os nossos pensamentos que distorcem a realidade ou o contrário?

Aliado a uma narrativa construída de forma magnificente, encontramos, visivelmente, uma técnica que não é, de todo, repreensível. Abandonado, quase por completo, o estilo formal que compunha as obras anteriores, a fotografia é, sem admissão para incertezas, dos pontos maiores do filme, tal como os efeitos especiais (quando absolutamente necessários) e o som (quase diria que a reproduzir as atmosferas perturbadoras a que Lynch nos habituou). Exemplo mais edificativo do que acabo de falar não terei senão com o prólogo que abre o filme, com a belíssima voz de Tuva Semmingsen, mostrando a harmonia perfeita de um cineasta (des)encantado com um mundo altamente cruel. Dedicando-o a Tarkovsky, Von Trier deixa sobrevoar uma sensação de harmonia, de sublime e de luz que poucos outros conseguiram transmitir e seduzir, através do contrastante retrato de uma humanidade perdida num paraíso incerto e inundado nas trevas.

9/10