segunda-feira, abril 26, 2010

O Tempo do Lobo

A zona sideral a que Michael Haneke parece estar tão compenetrado em se afirmar com as suas obras de arte é um não-lugar, sem firmezas cautelosas de período e área. Parecer-nos-á assaz estranho, senão falsidade, afirmá-lo, se tivermos em consideração a sua vontade cirúrgica de tudo situar nos filmes, sejam as determinações culturais e geográficas como as circunstâncias sociopolíticas (demonstradas, não poucas vezes, pela via do noticiário da televisão). N’O Tempo do Lobo, o austríaco desconstrói a formalidade da sua própria filmografia para filmar ficção científica, o que, à partida, seria menos perceptível, criando uma plena fábula política, sem contexto preciso espácio-temporal. Vemos, com os olhos de uma sofrida Isabelle Huppert, dolorosa e paulatinamente, o declinar de uma Europa sem futuro, de um estado pós-apocalíptico de um mundo destruído pelos desastres ambientais, pela desconsideração governamental, pelo triunfo do terrorismo. Haneke diviniza-se e, após iniciar, de forma tão frustrantemente idílica, a película com uma viagem de uma família à sua casa de férias (que acabará, como se imagina, da mais trágica forma), recria um continente, aparentemente iludido na esperança de uma união supranacional capaz de proteger a paz e os direitos fundamentais da humanidade, deixado à miséria, às consequências últimas do fracasso da tecnologia, à pura anarquia e à lei do mais forte, característica no tempo do lobo. É filmado, por vezes de uma forma demasiado cansativa e com alguns momentos dispensáveis, um Inverno cinzento e desconhecido, que não tardará em vir, que abarca famílias que norteiam sem uma língua definida, onde a pluralidade da verdade, da identidade e do reconhecimento da pátria e da cidadania decaem sobre a incerteza e o maior dos pessimismos. Ainda assim, somos confrontados (ou despistados?) com réstias de uma humanidade e complacência nos mais pequenos e singulares gestos, paradoxalmente os mais criticados se perspectivados em escala universal: a cooperação, a liberdade e o amor. De facto, nesta ordem de aspectos, remeter-nos-íamos com facilidade à ambivalência circunstancial presente no “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, onde, por um lado, nos é mostrado o que de pior o ser humano consegue evidenciar e, por outro, o que de melhor existe na sua natureza. Este será, pois, um dos mais importantes e simbólicos retratos de uma burocracia anónima, falida e maldosa presente na contemporaneidade política europeia – mas, claro, Haneke também não nos oferece soluções, ou talvez vá dando uma ou outra rodilha ao salientar o papel fundamental da (pequena mas ainda existente) bondade individual.
7/10

4 comentários:

  1. O Haneke já começa a ser muito comercial. Não volta a fazer filmes como o Funny Games, La Pianiste e o Caché. Este ainda não vi mas pra fazer filmes como o Das Weisse Band era melhor tar quieto (comparo muito ao Tetro do Coppola, muita pretensão a arte e pouco cinema).

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  2. JR, estou em desacordo contigo. O Laço Branco é um grande filme, diferente dos demais mas sublime. Não vejo pretensão nele, mas Cinema. Este insere-se muito no estilo dele, por isso gostarás se te identificas com os que enunciaste.

    Abraço

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  3. Laço Branco é um filme magnífico que aborda a repressão sexual, a rigidez dos costumes, a intolerância pelo direito dos outros, o abuso e incongruência de um médico de uma forma provocadora, que deixa em aberto a discussão. Não é um filme óbvio, permite muitas leituras.A pianista também é um grande filme.Este ainda não vi.

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  4. Manuela, descreveste bem de forma sucinta o filme. Fala, também e bem, da educação e da violência. A Pianista é um óptimo filme. Vê O Tempo do Lobo, que é uma obra que, apesar de difícil, vale a pena espreitar.

    Abraço

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