sexta-feira, dezembro 31, 2010

Os dez melhores filmes do ano

2010 foi um ano em grande. Recordá-lo-ei, em termos de descobertas, por ter sentido Béla Tarr, Kieslowski, Dreyer, Kiarostami, entre tantos, tantos outros. E, sem sombra para hesitações, Tarkovsky coloca-se na maior revelação cinematográfica do ano que tive. Fazendo um breve e injustamente descuidado balanço, posso constatar que a minha relação com o cinema mudou, cresceu, tanto mais não seja por ter começado a estudá-lo e a preparar-me para trabalhar nele. Apesar de tudo, é bom olhar para o ano que passou, e isto falando sempre em termos cinematográficos, quanto às estreias que as salas portuguesas deram. E, sobre elas, dei-me a oportunidade, muito à semelhança que outros autores da blogosfera, e não só, andam a fazer, de elaborar a lista do que considero serem os 10 melhores filmes que estrearam em Portugal em 2010:

10 | The Ghost Writer, de Roman Polanski

9 | Shutter Island, de Martin Scorsese

8 | Copie Conforme, de Abbas Kiarostami

7 | Lola, de Brillante Mendoza

6 | Kynodontas, de Giorgos Lanthimos

5 | Antichrist, de Lars Von Trier

4 | L'Illusionniste, de Sylvain Chomet

3 | Das weiße Band, de Michael Haneke

2 | Shirin, de Abbas Kiarostami

1 | A Single Man, de Tom Ford

A todos os leitores desejo um bom ano novo e deixo o desafio de dizerem quais seriam as vossas escolhas. E, quanto a este espaço, que anda um tanto parado, novas remodelações, em conteúdo (quanto ao design já tive a oportunidade de mudar), virão, de forma a que continue a escrever, com a calma e o prazer devidos.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

O próximo Malick


É, provavelmente, dos trailers mais esperados por mim - Tree of Life, a próxima (grande) obra de Terrence Malick, vai mesmo ver a luz do dia. As imagens falam por si.

domingo, novembro 21, 2010

Os Juncos Silvestres

Que belo exercício de contemplação e consagração a nível do amoroso e intelectual. Numa pequena vila algures no sul de França constroem-se personagens e pessoas, relações e performances doces e intrigantes pelas mãos de André Téchiné. À falta de conhecimento da restante obra do realizador (ainda) posso afirmar que Téchiné é uma revelação. É uma revelação na medida em que completa uma narrativa complexa à volta de quatro personagens dotados de uma forte relação interior individual, e ainda assim permite ao espectador a criação de uma ligação próxima com eles, pela especificidade de cada um e a globalidade abrangente do conjunto. Aqui fala-se de política e interesses culturais, mas mais que isso da juventude, do amor e do auto-conhecimento e descoberta de amizades e motivações, com as selvagens paisagens de um lugar por corromper como pano de fundo, lugar esse onde os corpos se podem sentir na totalidade sem as ambiguidades e desdéns trazidos pelos grandes meios urbanos, e onde cada um é livre da sua interpretação e fascínio. Aqueles que teriam todas as condições para um progressivo afastamento aquando a chegada a uma idade de diversas obscuridades como é a adolescência, neste Juncos Selvagens aproximam-se - melhor, complementam-se, numa completa e magnética reflexão a que o filme se propõe.
As imagens de um éden idílico não param de surgir, e o espectador é levado a viajar e contemplar lugares e corpos cujas curvas e intenções se mantêm sagradas, enquanto fora daquele sítio guerras e tensões continuam a insurgir o seu destaque no que é o estado do mundo actual.

segunda-feira, novembro 08, 2010

Kiarostami e Copie Conforme no Estoril

Abbas Kiarostami é, como deve ser de conhecimento geral, um génio vivo, uma autêntica fonte de inspiração. No Estoril Film Festival, o artista marcou presença com o recente Copie Conforme, uma narrativa que deambula entre a ficção e a realidade, como já seria de esperar. Neste filme, o realizador opta por se infiltrar no aniversário de casamento dos seus protagonistas centrais (grandes Binoche e Schimell) em Itália, cuja relação disfuncional, verificada na naturalidade dos seus diálogos (melhor dito: discussões), remete o espectador a um nível diferente de percepção do real. A obra de arte é o objecto de estudo dos dois, que tentam definir, até o final do filme, o que é realmente sentido, o que é realmente original, e qual o valor de uma cópia / duplo de um original, comparticipando num escape que fazem sobre o cerne da relação amorosa de ambos. É um filme que sabe a Kiarostami, com todo o seu desejo de chegar à verdade (como referiu na masterclass), com toda a simplicidade e leveza de que é conhecido. Enfim, percebe-se por que João Salaviza, que lá marcou presença, se apressou a considerá-lo como “o melhor realizador vivo” – Copie Conforme é mais um filme que, próximo do gigantesco Shirin, coloca dúvidas universais (no meio de tanta confusão linguística), liberta o espectador para um sentimento activo na percepção da criação. Como o iraniano acaba por confessar, somos nós os artistas, somos nós quem completa e tem o poder de pôr um ponto final a uma qualquer obra, a um qualquer objecto digno daquela atenção particular que nos faz falar de Arte.
(e gostava também de me orgulhar por ter um autógrafo do realizador. a prova.)

quarta-feira, novembro 03, 2010

Lola

Chove, para duas Lolas, a grave ideia de continuidade de vida. Se ambas se entrecruzam por uma morte passada, também ambas se entrecruzam por uma luta que acaba, sem que queiram, por uni-las. Ambas querem que a vida continue, caia e se purifique, tal como a chuva. O que, também, acaba por justapô-las numa só Lola é, sem dúvida, o facto de essas lutas não serem directamente por elas, mas pelo outro, pelos netos, traçando assim uma compaixão e descentração imensas, santificadas pelos grandes planos de Brillante Mendoza, cuja impecabilidade na realização e fascínios por tons amargos de azul tornam inevitável este trocadilho: a sua câmara é tudo, mais alguma coisa e também brilhante. E o seu jogo com opostos é de uma habilidade genial. Entenda-se por opostos a poesia do seu realismo social; o distanciamento emocional com que filma, de perto, as protagonistas; o humor que encontra nos contextos mais dramáticos (relembro a cena dos peixes, ou da casa de banho avariada). Mas a mesma câmara enche, à medida que se desenrola o moroso processo de luto aliado à presença opressiva da água, uma vaga e triste ideia de eterno retorno, de que tudo voltará ao mesmo, de que tudo aquilo não passa de uma história que voltará a acontecer de novo, e de novo, e de novo. Como a chuva.

sábado, outubro 30, 2010

Um mistério cinematográfico

Há uma misteriosa força que move as quatro horas e meia do encadeamento literário de Camilo Castelo Branco, meticulosamente observado por Raoul Ruiz. Mistérios de Lisboa, que se assume à partida como um filme-novela, um estudo de personagens no seu sentido clássico, é demasiado ambíguo para ser facilmente rotulado, seja obra-prima ou uma produção falhada. Em síntese, podemos considerá-lo um filme cheio, cheio de intenções primárias e cheio de triunfos inalcançáveis. Como é estranho assumirmos que não há qualquer identificação com as personagens e seus dramas (culpa dos trejeitos arcaicos de uma época que já não é ou das interpretações que deixam a desejar uma naturalidade que, aparentemente, deveria existir?) e haver, ao mesmo tempo, um amor tão grande à forma como estas estão ambientadas. E como é estranha a ambiguidade estilística da câmara de filmar do cineasta – tão depressa dança com os seus corpos e emoções, em longuíssimos e ritmados planos sequência, como se distancia, dançando, nervosamente, sozinha, em redor delas. Mas esta estranheza, que infelizmente se alia a uma fotografia desastrada (será também ela deliberada?) e a um argumento previsível, cansativo e demasiado visto (o que comprova que a literatura e o teatro são incompatíveis, literalmente, ao grande ecrã), remete a uma unicidade que nos faz esquecer daquilo que a obra é falha, uma unicidade de que é dotada a realização. Assim, para o espectador, tudo se transforma num brutal banquete de sensações e beleza, num exercício cinematográfico que ficará no seu pensamento como um absoluto mistério.

sexta-feira, setembro 24, 2010

Nota

Parece, infelizmente, que o TinyPic, portal que alojava todas as imagens das publicações dO Sétimo Continente bloqueou, eliminando-as definitivamente, como triste e revoltante consequência - o Photobucket parece uma boa alternativa. Apesar de tudo, o blog continua vivo, bem motivado pela recente e activa presença do meu amigo Paulo, que passará, claro, a escrever aqui, tal como o Rúben o fez e continua, neste e naqueloutro momento. Para finalizar a pequena nota, há que deixar os leitores com uma grande e feliz notícia: fomos, oficialmente e a partir do dia de hoje, seleccionados para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde passaremos, enfim, a ser alunos.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Lost Highway

É bizarro perceber que se passaram duas horas e um quarto e eu completamente concentrado numa trama que se tenta perceber mas que nunca - e eu acredito no que estou a dizer - mas mesmo nunca se vai plenamente desmistificar.
David Lynch é um senhor dotado da capacidade de discutir a verdadeira essência da realidade e de a desconstruir em prol do culto, da beleza, na peculiaridade e do transcendente. Acredito mesmo que, muito para além do simples espectador, nem o próprio cineasta consiga descodificar plenitude narrativa naquilo que montou, em Lost Highway.
Este filme é uma obra completa na sua existência surrealista mas não mais que isso, por não conseguir captar a realidade do mundo comum e em vez disso extrair dela tudo o que lhe é sinistro, erótico, esquivo e artificialmente belo, e ainda bem!
A acrescentar apenas a sensação de incógnita, inconstância, deambulação lógica e formal, e pura mestria com que se fica desta, definitivamente, obra de culto.

sábado, setembro 11, 2010

Moonlighting

Penso que nunca esquecerei a minha estreia com Skolimowski. Nunca vi, ao contrário do Rúben, o Quatro Noites (apesar de este ser, como parece óbvio, um caso a colmatar em breve), daí que conheci uma Anna diferente – a Anna amada, fora do alcance do protagonista, a Anna fantasma, a Anna que nunca vemos, a Anna de Moonlighting. E, este, é, não há dúvidas, um grande filme, um pedido de ajuda do polaco (expatriado entretanto na Inglaterra, tal como o protagonista), um pedido de liberdade, de amor e de compressão, uma carta de amor àqueles que querem regressar às origens e que não conseguem. Ou porque não podem, ou porque não querem. E todas aquelas desventuras e diversões nos parecem simbólicas, mágicas, leves como uma pena e, ao mesmo tempo, intercalamo-nos com o olhar realista, duro e terrivelmente pessimista do cineasta da hostil Inglaterra e da longínqua e perdida Polónia, em tempos de Guerra Fria. Mas felizmente há luar. E é isso que o torna, em tão grande parte, único e completo. Provavelmente, nem sei bem, vê-lo na Cinemateca moldou aquela deliciosa projecção em algo mais, para mim. 

Não importa, realmente. Lembro-me tão bem do filme como me lembro da semana passada – dos aspirantes a estudar cinema, daquele óvni amarelo tão característico de Amadora, do Rossio a brilhar de noite e de dia, do professor de realização a perguntar o que é o cinema só para falar do transcendente salto gramatical de Coppola, das referências histéricas e incontidas de grandes Cineastas como quem os tem na palma da mão, do medo de não podermos nunca mais ver o farol que Pedro Costa tantas vezes contemplou. Lisboa foi, e vai continuar a ser, um sonho.

sexta-feira, setembro 03, 2010

Quatro versos a Anna

Serei sempre um apreciador do diminuto. Em tudo, mas talvez principalmente no cinema, ocupa o aparentemente insignificante, o quase imperceptível, o lugar onde se manifesta a glória, a nobreza que torna sublimes todos os caminhos, e elevados todos os movimentos indiscerníveis que a eles nos conduzem.

Há, assim, um momento em "Quatro Noites com Anna" que, por si só, o teria eternizado na minha memória, momento esse que, pode dizer-se, me conquistou decisivamente: evoco a cena em que, após o enterro da avó, a personagem central se senta na penumbra da sua casa a tocar acordeão. Este instante, mais que qualquer outro, é ilustrativo do profundo abandono a que o protagonista está votado, não apenas pelas circunstâncias em que se desenrola a sua existência, mas pela sua própria personalidade. Retraído, socialmente desajustado, com evidentes dificuldades em explicitar as suas motivações, por tudo isto inevitavelmente incompreendido pelas poucas sombras com que o cruza o seu quotidiano ou o ofício de cremador, não encontra outra - mais genuína? - forma de honrar a defunta que tocar um instrumento que descobriu entre os pertences dela.

Privado, após a morte da única pessoa com quem, como percebemos mais tarde, porventura tenha conseguido estabelecer uma relação palpável, de todo o calor humano, desvenda uma maneira de se aproximar de uma vizinha que gosta de observar sorrateiramente da janela da sua casa - Anna, uma enfermeira cuja violação ele presenciara anos antes e pela qual foi, injustamente, declarado culpado.

Com ela - mas sem que se esta se dê conta - passará quatro noites, cada uma testemunhando o sentimento benévolo, altruísta, que o faz regressar sucessivamente ao quarto dela, mas que sabe impossível de concretizar. Não é de espantar que, enquanto amante, ele se resigne à única possibilidade de viver esse amor: comovente é, contudo, a forma como o faz, através de simples gestos como o costurar um botão de uma camisa, ou o lavar a loiça que uma festa de aniversário esqueceu pela divisão onde Anna dorme.

A melancolia, essa mesma que parece acompanhar as neves que cobrem a paisagem do pequeno vilarejo onde se desenvolve a acção, e que assenta bem em toda a obra que se debruce sobre os mistérios da condição humana, parece, mais que Anna ou o seu trágico enamorado, ser a verdadeira personagem principal, marcando presença em todas as situações, todos os silêncios e todos os locais, inclusivamente compassando os movimentos de câmara que os materializam em filme. Como o instante final, que nos faz antever, como uma angustiante confirmação, o que está reservado àquele que acompanhámos até ali.

Não me lembro, confesso, do nome da personagem de que vos tenho falado, nem fiz ainda o esforço de o procurar. Isto talvez porque as grandes personagens não têm nome. Têm, somente, vida.

quarta-feira, setembro 01, 2010

Chungking Express

Falar de cinema é difícil. Às vezes debato-me com um problema, que surge neste ou noutro dia e que me consome algum tempo de reflexão antes de escrever sobre algum filme que vejo: como falar e sobre o que falar desse filme? Ter uma experiência cinematográfica, boa ou menos boa, será sempre ter uma experiência única e irrepetível de vida, não importa quantas vezes a quisermos ter e a revisitarmos, de alguma forma. Como transpor, com palavras e totalidade, a poesia de Tarkovsky, a misteriosa revelação de um Werckmeister Harmonies ou de Uma Odisseia no Espaço, ou a desinteressante vivência de Os Condenados de Shawshank? A impossibilidade parece-me ser a resposta e, diante desta evidência, muitas são as vezes em que hesito escrever neste espaço, em partilhar o que em tempos me pode ter sabido a uma iguaria. Marcel Martin, autor do famoso A Linguagem Cinematográfica, defende que é necessário que haja uma distanciação entre o público e a obra executada para que o seu valor estético e ideológico fundamental seja, com mais certeza, captado (senão, pelo contrário, restar-nos-íamos à redutora alienação da realidade, vivendo, apenas e só, o cinema). E falar sobre os filmes, sobretudo aqueles que mais me tocaram e inspiraram, ajuda-me a manter essa distanciação, ajuda-me a recolher informações e a crescer enquanto cinéfilo com aspirações a qualquer coisa de maior. Somos todos filhos do cinema, o nosso pai mais novo. As suas características e linguagem absoluta fazem-me crescer. E, sobretudo, as suas possibilidades fazem-me acreditar que a sua criação constante é o futuro.

E isto para começar a falar de Chungking Express? Alonguei-me. O cinema de Kar-Wai é sem dúvida um cinema que adoro, este pedaço aqui é bom, é delicioso. Colorido, sobretudo cheio em pormenores, em riqueza visual, como seria, aliás, de esperar. As suas personagens navegam no caótico e melancólico mundo da desilusão e do desencontro do tempo, na sempre inevitável solidão. Mas é esta certeza a que o chinês chega sempre que faz, contraditória e precisamente, com que ele dê mais atenção, pelo menos nesta obra, à facção divertida, quer dizer, irónica da vida. É difícil esquecer a sua inacreditável obsessão pela California Dreamin’ que, depois desta fita, estará sempre associada ao nosso sonho de chegarmos à nossa Califórnia, de tomarmos o Chungking Express ou o comboio com direcção a 2046, ao nosso sonho de nos retirarmos deste mundo, ao nosso sonho de nos ultrapassarmos e realizarmos. É um sonho, que nem a magia de Kar-Wai consegue realizar.

segunda-feira, agosto 30, 2010

La Captive

La Captive é uma história de amor, mas não uma história de amor comum. É uma história de amor dos contos mais idílicos e puros, onde vale até morrer pela pessoa que se ama; onde por muito insustentável que esse amor se desdobre vale a pena sofrer, revisitar as maiores tragédias e sobreviver às mesmas, de forma a, de seguida, enaltecer o escudo com se irá batalhar por esse sentimento tão incongruente mas de verdadeira beleza e poesia.

Foi o primeiro filme que vi da belga Chantal Akerman e provavelmente o único pois não quero desarmar a ideia de perfeição minimalista com que fiquei desta autora.

O filme trata, em primeiro plano, da relação de afecto entre os dois principais personagens – Simon e Sylvie -, que vão surgindo os seus egos num ambiente muito pouco comum e de uma peculiaridade física, formal e transcendente tal que só por si vale a pena assistir; e, em segundo plano, das revoluções intrínsecas que estes vão desenvolvendo ora entre si, ora em comunhão entre a rapariga e a imagem das suas líricas amantes e musas.

Ele vive o seu amor da forma mais intensa que conhece de si – cheio de manias e aparatos, consegue, pela vontade em Sylvie, descurar de si e entregar-se à enamorada. Ela, por sua vez, envolve-se numa verdadeira campanha de forma a manter a sua paixão e ternura, sendo que se sente atraiçoada pelo corpo e mente que a empurram em direcção oposta a Simon e a aproxima da sua verdadeira essência humana – Sylvie deseja amar para sempre o rapaz como ama na fugacidade dos momentos todas aquelas raparigas e todas aquelas formas femininas que não entende, e ao mesmo tempo percebe que, mesmo tentando, não conseguiria desarmar o seu carinho por Simon.

A narrativa avança, e à medida que isto acontece, a relação dos dois vai-se desfazendo, para depois, nas sequências finais, se encontrarem novamente, não pelo sentido instantâneo dos momentos mas sim pelo que ambos sabem poder e querer sentir, numa amplitude tal que revela o que instintivamente nos separa do animal comum – o sentimento, a racionalidade.

O espectador é confrontado pela edificação de duas estruturas completamente opostas e sem intermediários que dão imagem a duas formas de viver o amor: Simon quer sentir-se omnipotente, saber quais os sonhos e pensamentos de Sylvie, quer conhecê-la na sua totalidade para depois poder absorver os pedaços mais ínfimos da sua pessoa; ela encontra a verdade do sentimento na realidade interior do parceiro da qual o seu conhecimento está privado, permitindo um determinado espaço e mistério entre os dois, que lhe fomenta o querer.

Assim Simon faz dela sua cativa, aprisionando-a a si e ao seu espaço pelo sentir – e quem não gostaria de estar assim preso?

É de ressalvar que o filme é baseado no romance de Proust, La prisonnière.

segunda-feira, agosto 23, 2010

Ordet - A Palavra

Vergílio Ferreira, no seu Para Sempre, tentando responder-se recordando episódios da sua própria narrativa, questiona, por diversas vezes, qual é, de todas elas e de todo o falatório que a humanidade prossegue ao longo dos tempos, a palavra essencial, a palavra última, a palavra verdadeira, a Palavra da Vida. À sua semelhança (e à da restante demanda existencialista da filosofia, particularmente a de Kierkegaard), Dreyer procede à revitalização da busca pela Palavra, da busca pela Vida – e assim cria, após uma série de dificuldades, Ordet, que brilha no patamar das mais brilhantes das obras-primas e, sobretudo, no das mais essenciais. Neste conto belo e ecuménico como poucos o conseguem ser, construído como que num seguimento de detalhados e portentosos frescos (perfeitos enquadramentos, planos sequência, luz e composição cénica), assistimos ao choque intemporal de ideias, à discussão inútil de mentiras desacreditadas. Assistimos, também, à hipocrisia das religiões institucionalizadas (particularmente as referentes ao Cristianismo), à falsidade beata e obscura dos seus crentes, mas, ao mesmo tempo e com os mesmos contornos, à absoluta crença na racionalidade científica e na negação do inexplicável ou do concretamente inexistente. Tanta cavaqueira e superstição, tantos monólogos e diálogos, para nos restarmos ao silêncio: entre tudo, todos e todas as convenções (ou disparates) sociais, morais, enfim, ideológicos, assistimos à Fé do ignorado, do ridicularizado, do impossível e do inacreditável, nas ruínas ou nos montes, sobre um tecto de uma casa a querer sê-lo ou sobre um eterno e desconhecido céu. Tanta discussão para nos restarmos à verdade, ao incompreensível, ao sorriso e lágrimas finais, à aceitação da Vida e da Palavra.

domingo, agosto 22, 2010

A arena de João Salaviza

Tomei a liberdade de fazer upload, no Youtube, da curta-metragem “Arena”, escrita, montada e realizada por João Salaviza, conhecida por tê-lo tornado no primeiro português a ser galardoado para uma Palma de Ouro (de curtas ou longas-metragens), no ano passado, em Cannes. Quando a vi na exibição conjunta do pobre “Taking Woodstock”, de Ang Lee, apreciei bastante a linguagem deste cineasta tão novo, que, em comparação ao precedente “Duas Pessoas” (que se encontra facilmente na Internet), um trabalho que Salaviza fez para a Escola Superior de Teatro e Cinema enquanto lá ainda era aluno, mostrou que gosta de explorar a singularidade das suas personagens e particulares casos que se redimensionam à escala global. Penso que Salaviza é exímio na sua mise-en-scène, e a tomar rédeas de acção com sobriedade e acalmia. Gosto que ele vá contemplando a densidade emocional que se vai sobrevindo ao longo daquela pequena trama, que toque na solidão, no aprisionamento existencial e no vislumbre de uma liberdade inalcançável com grande sensibilidade, sem pretensões ou fulgor de querer tudo mostrar. Daí que “Arena” seja um pedaço de cinema exemplar, sobretudo para o nosso país, não para mostrar que tem que haver qualidade (pois esta já existe, só que não pode ser desenvolvida), mas sim para alertar os portugueses, e sobretudo quem os governa, para o caótico estado em que este se encontra em quantidade e valorização.

quinta-feira, agosto 19, 2010

O Quarto do Filho

Que mudou no Nanni Moretti que se mostra desde Querido Diário? Que mudou no Nanni Moretti que é desde O Quarto do Filho? E que muda no Nanni Moretti quando, a todos os dezanoves de Agosto, comemora o seu aniversário? Recordei-me dele há pouco e, sabendo que hoje o cineasta conclui 57 anos, relembrei o meu preferido do italiano. Há poucas razões pelas quais posso considerar La Stanza como um dos filmes da minha vida. Agrada-me sobretudo a sua simplicidade, a sua sinceridade. Não é comum, mas universal. E daí depositar nele a verdade de uma relação de família. É sobre um pai e um filho, a morte e luto, as vivências e as recordações. A dialéctica absurda da existência humana. E o protagonista, psicanalista deparado em constância com uma das mais essenciais questões de todas – qual é o significado de tudo isto –, personifica uma rendição subtil e misteriosa, mas absoluta: a aceitação última de tudo que vai acontecendo e marcando o Passado e da impossibilidade de a entender. E é, finalmente, sobre o aproveitamento de tudo em totalidade. Daí as várias sequências do carro e da estrada. Daí a sequência final. Parabéns, Moretti.

domingo, agosto 15, 2010

Shirin

O mais provocatório derradeiro pedaço de arte da última década foi assinado por Abbas Kiarostami e manter-se-á invisível até o fim dos tempos. É uma arrebatadora experiência cinematográfica, sem precedentes e que se tem apenas uma vez na vida, que se lança a uma simples, ainda que bastante ousada proposta – a de captar, literalmente, a essência do espectador. Assim é que o iraniano filma cento e quinze mulheres numa sala de cinema, as quais, por sua vez, sentem a adaptação viva de um poema persa do século passado.

E eu, que acabo de ver o filme, que vi, ou, melhor me questionando, quantos terei visto? Abbas parece realizar dois filmes diferentes – o que todas aquelas mulheres vêem, e que nos chega pelo som, pela luz e pelas emoções transpostas no segundo filme, que, sinteticamente, se resume ao que vemos daquelas mulheres. Entre o eu-espectador e o ela-espectadora há, e não há, um imperceptível abismo que nos separa daquele filme – porque ela vê e sente Shirin, e eu vejo e sinto a pessoa que vê Shirin. E é tão desolador, tão cru e imprevisto ser-se atacado por esse tipo de voyeurismo divino, um que nos permite, vezes sem conta, observar cento e quinze lindas mulheres, que contam, com as suas caras, cento e quinze distintos e incorpóreos filmes. Aceder ao profundo da actriz-espectadora e contemplá-la em sublime esplendor, à mulher que Vê o filme e à mística libertação que permite com que ela o Veja, alienando-a (ou refugiando-a) de todo o mundo social que está fora daquele espaço, de todos os anéis, daquela roupa e, por fim, daquele véu. Resta-se o olhar. Aquilo, todos aqueles sorrisos, espasmos de medo e ansiedade, todos aqueles olhares, e todas aquelas lágrimas são pura vida, são existências, únicas, que ali, naquela sala de projecção, durante uma hora e meia, se juntaram em máxima potência, sem se aperceberem da quantidade de universos e sensibilidades que se aliaram. Quantos filmes dariam cada uma das suas vidas? Quantas alegrias, quantos triunfos, quantas desilusões, quantas angústias, quantas questões, quantos momentos? Quantas desventuras do coração, quantas revelações? Porque, ao mesmo tempo, é como se estivesse lá, sentado e ao lado delas, mas sabendo-me ao lado delas, para elas como mais um anónimo que se junta ao laço cósmico que o Cinema, suprema, humana e sorrateiramente, concebe entre todos os espectadores daquela indefinível coordenada espácio-temporal.

Shirin é um mistério, um espectro, uma revelação. Para quem ama o cinema, ou para quem ama a vida, Shirin é, para além disso, obrigatório.

segunda-feira, agosto 09, 2010

J’ai tué ma Mère


É um Gus Van Sant que se casa com Wong Kar-Wai e tem Pedro Almodóvar como amante. Mas é, também, antes de tudo isso, íntimo, belo, humano,… especial, como o protagonista detestava ser catalogado. Considero bastante assombroso como o canadense Xavier Dolan-Tadros, que vestiu a pele de actor, produtor, argumentista e realizador, apenas com dezanove anos, no seu primeiro filme, chega a um patamar de sobriedade e unicidade tão vincado e forte em todas as fases do trabalho. Não me admira, também, que os críticos tenham recebido J’ai tué ma Mère com particular estranheza, uns observando a atípica construção narrativa e estética com amor, outros com repulsa, focando-se no narcisismo da obra semi-auto-biográfica (mas não são todas?).

«Matei a minha Mãe» é um «Tudo sobre a minha Mãe» que estuda sobre as relações familiares na sociedade contemporânea, focando-se particularmente na de um adolescente de dezasseis anos, atrevido, egocêntrico, explosivo como é dado na idade, fervilhante em ideias e criações, apaixonado pelo namorado, que discute constantemente com a mãe – e esta, por sua vez, é sarcástica mas complacente, frágil mas mascarada, esforçada mas incapaz de compreender o seu fruto. E é pela oposição tão demarcada de personalidades e a desconstrução do choque entre ambas, associado ao irremediável complexo de Édipo, que faz com que tudo flua com naturalidade, sem maniqueísmos morais. As discussões, engenhosamente arquitectadas, só demonstram a sinceridade e potência com que o cineasta faz transpirar as suas personagens e as circunstâncias por onde estas caminham, debruçando-se sobre um tipo de amor disfuncional e bipolar, pelo outro e por elas mesmas, que atinge o cume do entendimento na distância e no silêncio e não nos sucessivos “amo-te” e “odeio-te”que perfazem os diálogos entre mãe e filho. 

E finalmente Xavier mostra ter um excepcional bom gosto na sua criação no ponto formal, confluindo com a originalidade e a matemática dos filmes independentes mais recentes, através de uma atrevida mas harmoniosa montagem de planos minuciosamente decorados e pensados, muito à semelhança de Tom Ford, por exemplo. Mas agradou-me como ele, que ainda está tão fresco, tão vivo e tão jovem, não se resta à técnica e à sua experimentação, mostrando como não se tornou escravo desta, construindo uma docu-ficção que se apresenta como uma interessantíssima carta de amor à mãe a à sua intemporal figura.

sexta-feira, agosto 06, 2010

Hannah e as suas Irmãs

É já sabido pelos leitores deste espaço que Woody Allen se mantém como uma referência minha quando falo do cinema como arte, do cinema como procura essencial do que somos e das grandes questões da vida. E da morte. Penso que ele é dos pouquíssimos cineastas que consegue vislumbrá-las essenciais, com um olhar muito preocupado e, ao mesmo tempo, relaxado, reflectindo e rindo-se delas. É precisamente sobre elas que, muito à semelhança do que se fez com outros trabalhos do norte-americano (como Nem Guerra, Nem Paz, etc.), esta comédia se debruça, sem, contudo, as colocar como principal pano da trama. A razão pela qual o tom das suas obras se mantém a referida é simples e única, mas eficaz – o facto de Allen se defrontar com uma vida enigmática e impossível de resolver, e que assim permanecerá até o fim dos seus dias, com toda a tragédia e ironia que lhe é inerente. É, precisamente, com Hannah que isto se demonstra com mais clareza, por via da personagem secundária encarnada pelo homem, um hipocondríaco neurótico que busca o significado da vida com Sócrates, Nietzsche, a religião católica, uma tentativa de suicídio, um filme de infância e o achado novo amor. É, também, este que sintetiza a essência desta obra que viaja por dentro de várias cenas de casamento, passando pela traição, a lealdade, a irmandade, o valor da família e a paixão – tudo sabe a um tragável (mas misterioso) conjunto de acasos, como se a própria vida fosse assim mesmo, para ser, só e simplesmente, vivida.

sábado, julho 31, 2010

Kynodontas






Começo já por afirmar que tenho a plena consciência de que não vou conseguir discorrer acerca de todos os aspectos do filme numa só publicação, mas a vontade de escrever e divulgar esta obra que encontrei quase ao acaso é tanta que não me deixa esperar e tomar o devido tempo para que consiga fazê-lo eficazmente.

Kynodontas (Canino em português) estreou esta semana em Portugal apenas no cinema Medeia King em Lisboa. Ao deparar-me com alguns comentários dedicados ao filme, com os variados resumos que são apresentados, com a marca de água de Cannes no cartaz (desculpem o cliché, mas pesquisar os filmes que marcaram presença em Cannes quase sempre assegura uma sessão de cinema feliz), com os diversos trailers e com a surpresa de se tratar de uma produção grega, percebi que seria um bom filme a ver, ainda que sem expectativas exacerbadas. Foi então que dediquei uns curtos mas tão requintados 92 minutos a ver esta obra.

Kynodontas conta-nos com as imagens o ambiente familiar e social de uma família (a pedra basilar a partir da qual sociedade moderna se construiu, fundamentou e apoiou) grega cujo quotidiano e concepções de regularidade estão completamente deslocados da realidade comum a todas as sociedades do universo na sua forma mais básica.

Um casal e os seus três filhos: seres alienados e privados de um dos principais elementos definidores da personalidade humana – o nome -, sendo assim chamados de ‘pai’, ‘mãe’, ‘filho’, e as filhas, ‘a mais nova’ e ‘a mais velha’, que, à excepção do pai, que assegura a condição financeira crucial à permanência no estado de inércia em que os restantes membros familiares se desenvolvem através de um emprego, não são autorizados, pela criação de mitos relativamente ao mundo no exterior num jogo e manipular de ideias criado e levado a cabo ao longo de toda a educação dos filhos, a ultrapassar as barreiras físicas e psicológicas criadas pela alta vedação que circunda todo o terreno pertencente à propriedade onde vivem.

Assim a família vai vivendo, dia após dia, uma realidade completamente díspar à comum: não têm acesso ao mundo físico exterior, como já referido, e, para além disso, todos os meios de cortar com essa barreira espacial, como televisão, rádio ou mesmo internet, foram afastados daquele lar. Os filhos vivem apenas com os conhecimentos que lhes foram adquiridos pelos pais que, zelando por uma certeza de bondade quase utópica, criam formas de repelir qualquer elemento que ameace essa concepção – quando confrontada com a palavra ‘zombie’ por um dos filhos a mãe responde que zombies são uma espécie de flor -, e tantos outros exemplos destes estratagemas educativos.

O filme estabelece uma ligação muito forte entre os ideais desta (dis)funcional família e a sagrada família do Jardim do Éden que se manteve pura e limpa até ao momento do conhecimento do mundo, e são inúmeras as referências que nos levam a estabelecer esta comparação: o jardim filmado, circundante à casa, surge como uma metáfora para a libertação do espaço ‘casa’ que se define como principal meio físico de clausura, e onde as maravilhas acontecem, as crianças brincam e se exercitam e aprendem a conhecer apenas o apetecível dentro daquele lugar.

Os criadores de todo este ambiente – os pais - parecem perceber quais as melhores formas de levar a cabo toda a seu processo de experimentação educacional com os filhos mas parecem esquecer-se de que o Homem é um ser essencialmente social e, ainda mais do que isso, intelectual, e que de uma forma ou de outra estes dois elementos se relacionariam e posteriormente revelariam as verdadeiras potencialidades humanas – para o bem ou para o mal. A consequência disto revela-se na capacidade que os filhos vão ganhando de perceber as suas curiosidades e compreender as mais-valias – porque sim, na sociedade actual, ao contrário do demonstrado na fase mais precoce e utópica do filme, há pessoas que encontram mais-valias na maldade – da mentira, chantagem e manipulação entre os membros da família.

Contudo, nem só da presença destes cinco elementos vive esta narrativa: procurando enaltecer e preservar as potencialidades sexuais do filho homem, o pai sente-se obrigado a introduzir uma outra personalidade – de forma esporádica - no seio desta comunidade, neste caso uma mulher que se oferecia em troco de dinheiro (mas não podendo, uma vez que tudo naquela família procura zelar pelo conceito de bondade e paz, ser conotada esta acção de forma negativa como acontece com a prostituição básica). Este personagem, de nome Christina, vai revelar-se como a ferrugem que corrompe a poderosa estrutura de ferro que protege aquelas crianças das vicissitudes do mundo exterior.

Do ponto de vista formal, este filme apresenta um tipo de voyeurismo não tão óbvio como o de filmes como Janela Indiscreta ou mesmo Disturbia, mas de forma algo semelhante ao de Afterschool, não só pela maneira de como são captados os planos de acção como também pela interpretação do movimento de câmara, opções estéticas e até introdução do elemento ‘vídeo’ dentro do próprio filme – o que de si revela o forte elemento voyeur já referenciado: o espectador é mais do que isso e, por estar tão distante daquela realidade vivenciada pelos personagens filmados, sente a lacuna e a barreira inteligível que não permite o contacto com as experiências que ocorrem em frente aos seus olhos.

Vale muito a pena ver por tudo: pelo cinema formal de excelente qualidade e de uma beleza e percepção estética atordoantes, pela narrativa de uma complexidade filosófica fantástica que levanta muitas questões, dá respostas a algumas e ainda tem a ousadia de tentar quebrar com alguns ideais sociais, pelos actores, irrepreensíveis e incontornáveis, que incorporam o personagem de uma forma estonteante e especial, como os de Idioterne ou mesmo Antichrist (e agora a ligação às exigências de Lars Von Trier aos seus actores), onde se vislumbram cenas de sexo explícito, mutilação e agressão aparentemente não simuladas (o que também acontece em Canino), e pela ode ao mundo do Homem, à sua condição na sociedade e à relevância desta na preservação racional da espécie.

Em jeito de conclusão é muito bom perceber também que o cinema, a arte e a cultura são superiores a quaisquer tipos de condicionalismos económicos, e que obras destas continuam a ser produzidas mesmo em períodos de condições adversas: da Grécia, um dos países mais fragilizados com a actual crise económica global, surge esta obra-prima do cinema contemporâneo.

sexta-feira, julho 30, 2010

Sátántangó

É, precisamente, quando as chuvas de um Outono pardacento dão início na Hungria da decadência do comunismo que Béla Tarr decide abrir o seu monumental e híbrido épico, fazendo-as permanecer eternas na melancolia apocalíptica com que o filme se encontra ambientado.

Também é a partir do segmento simbólico que dá início a Sátántangó que percebemos do que se propõe o húngaro a tratar – do gado ao qual o homem pertence e do seu contínuo e anedótico estado de animalidade –, tal como o estilo, único e deslumbrante, com que ficará imbuído. Antes de drama (ou comédia?), e antes de qualquer outra convencional categoria narrativa, há que tratar esta obra-prima como uma profunda e misteriosa alegoria, um ensaio não apenas político e anti-capitalista, mas uma jornada que perscruta os caminhos da humanidade e desdobra o véu para um negro futuro. Explorando, desencantado, o universo de uma aldeia perdida por aí, onde inundam a corrupção moral e as desmedidas ambições materiais que preenchem o colossal vazio da alma do seu povo, somos confrontados com a chegada de Irimiás, o homem que todos julgavam morto, que acaba por se revelar, diante dos seus planos manipuladores (que denunciam, duplamente, a ingenuidade e ignorância das pessoas e uma vida regida pela lei do mais astucioso), tão ou mais diabólico e conspurcado do que os restantes, e somos confrontados, também, com a sede de morte e comportamentos levados pelo impulso animalesco, representada, com mais força, pela sequência de Estike, a criança que, após torturar e envenenar o seu gato, se suicida. Talvez este segmento resuma a essência derrotista e algo niilista de Sátántangó, o modo como vê que o homem está perdido em si mesmo, num mundo onde o império do egocentrismo se adivinha inevitável. Mas escrevo apenas o primário, o vislumbre daquilo que ainda pa(/e)rece indecifrável e merecedor de reflexão.

Tarr embebeda-nos com os seus lentos, anti-maniqueísta, naturalista e ascético olhar e perspectiva, a tal ponto que o confundamos entre as múltiplas perspectivas dos protagonistas, os campos abandonados, as estradas lamacentas, a porta e a janela estáticas mas vivas, a música e a noite eternas, e, ao mesmo tempo que cria aquela que não é mais que a anedota cósmica da vida, dança connosco, durante sete horas, um tango revelador da miséria para que, irrevogável e lentamente, caminhamos juntos, como o rebanho que eles próprios criaram.

quinta-feira, julho 29, 2010

Toy Story 3

Lembro-me, felizmente bem, da novidade que foi quando a primeira longa-metragem da Pixar estreou – não propriamente da áurea que entretanto ganhou entre os restantes público, crítica e procedente criação cinematográfica na animação, mas, mais especificamente, do efeito que causou em mim e das vezes que o revi, em casa e em cassete, vezes sem conta. Teria, entretanto, os meus seis anos, marcando uma relação com o cinema extremamente precoce, mas cujos frutos se acabaram por figurar muitos, e maduros (a tal ponto que, e recordo-o lendo alguns registos de final do ensino primário, já me dizia futuro realizador da Disney!). Foi, pois, vendo continuadamente toda a filmografia da produtora (desde os grandes e primeiros clássicos de animação tradicional às últimas estreias da sua decadência face ao império das três dimensões, uns bons, outros nem por isso) que, natural e paulatinamente, avancei para um tipo de cinema diferente, adaptado às minhas necessidades e capaz de desenhar um novo rumo à minha projecção da vida e da minha existência. Ver Toy Story 3, no dia de hoje, foi uma experiência rara de nostalgia, foi obrigar um Flávio-Andy de dezoito anos, que também vai para a faculdade, no meu caso estudar cinema, a defrontar-se com uma infância que já lá vai e não volta, com uma mente aberta e apenas preocupada em resolver os problemas do universo interior que se ia criando na altura. E vê-lo ao lado de outras crianças, cujo mundo ainda lhes está tão fresco, numa alienação colectiva propiciada pelos desconfortáveis e desnecessários óculos 3D, foi ainda mais simbólico e único – não especialmente pelo desenvolvimento da trama, que é uma interessante reciclagem dos dois primeiros filmes da trilogia, mas, sem dúvida, pela poderosíssima sequência final. Essa, sim, sintetiza aquela que foi uma descoberta fascinada de uma das facetas do Cinema como procura de mim, aquele tempo em que foi passado um irrevogável Passado, aqueles necessários abandono e despedida pelos quais cada ser humano tem que fazer dos vários “sis” que o compõem…

sexta-feira, julho 23, 2010

A Origem

Christopher Nolan é o único realizador, na actualidade e em Hollywood, a conseguir fazer bons blockbusters, que consigam suscitar interessantes problemáticas e que, ao mesmo tempo, tenham a função de entreter o espectador. 
O pós-Cavaleiro, obviamente muito aguardado pelos espectadores de todo o mundo (só no cinema onde fui ver o filme na estreia havia 3 sessões mais ou menos ao mesmo tempo do mesmo, preparado para encher as salas, o que efectivamente aconteceu), podia, com facilidade, desiludir os seus seguidores mas, claro, para além de situar numa zona de conforto e predilecta em termos narrativos (o thriller psicológico bem mostrado em “Memento”, baseado na memória), Nolan supera-se, e lança uma obra engenhosa, complexa e bastante curiosa. Reflectindo sobre a ambivalência ser / parecer, o realizador constrói, a partir de um simples mote, uma aventura pelas ruas da imaginação, do sonho. 
E, de facto, ver A Origem foi como entrar num sonho, fascinante e recreativo, como se o estivéssemos a descobrir e a explorar por sabermos que, no espaço daquelas duas horas, haveria um necessário despertar. Há no filme dois tipos de crenças – a que afirma a verdade no sonho vivido, representada pela personagem de Marion Cotillard, abafada por uma outra crença (exaltada talvez em demasia), a que suporta a verdade na “realidade” vivida, representada, e muito bem, pela de Leonardo DiCaprio. Arrisco-me a dizer que ambas sustentam ilusões intersubjectivas que não vão de encontro à absoluta verdade (talvez nem exista alguma) e que, portanto, descobrimos este mundo sem nada saber o que iremos achar, quem iremos conhecer ou a “quem” este pertence. É, pois, um filme a ser utilizado para posterior reflexão sobre diversas correntes. 
Posto isto, resta salientar o carácter psicanalíco e algo alegórico de Inception: o mar como símbolo da ponte entre o inteligível e o imperceptível, o consciente e o inconsciente, o possível e o impossível; o gelo e a neve como demonstração da exploração do iceberg freudiano; o labirinto psico-emocional como representação dos enigmas do id; a destruição do mundo vista nos sonhos como imagem da fragmentação do auto-conceito que vamos tendo de nós, em co-existência com a desordem. 
Mas não é nenhuma obra-prima. Nolan não consegue deixar de escapar a alguns clichés, maquilhagem e a um exagerado abuso nas cenas de acção, explosões e tiros, mas compreendo-o: tinha que o ser porque o filme foi essencialmente feito, financiado e promovido para vender e ser falado. 
É, em contrapartida, o seu ritmo frenético, com um tom quase épico (sabendo bem instrumentalizar o pathos do espectador), que me deixa como noutros filmes ele me conseguiu deixar, e isso não deixa de ser óptimo. Nisso, e para entreter, o realizador é exímio.

segunda-feira, julho 19, 2010

As Vinhas da Ira

Existe, n’As Vinhas da Ira que John Ford tão impecavelmente filmou, uma dimensão que ultrapassa a aventura e retrato social desenhados por Steinbeck, uma força tão sensível que ultrapassa até o próprio alerta do horror vivido nos tempos da Grande Depressão. E é, sem dúvida, esse humanismo que faz com que este seja uma incontestável grande obra, uma das melhores que o cinema teve até os dias de hoje. 

Ford filma as personagens com amor, apaixonado pelo seu desespero e sentido de união, filma o valor da família e eleva-o a uma categoria milenar, intemporal e primária, como se, antes de tudo e de todos, e face a qualquer circunstância possível, devesse apenas existir a família e nada mais. E com o mesmo sentido de comiseração, o realizador não descura o extremo oposto, a decadência da tradição e o triunfo da megalomania do ser humano e do individualismo egocêntrico. Assim, se fazemos, com facilidade, um relacionamento entre a (docu-)ficção montada e as ideias marxistas e anti-capitalistas, também é com segurança que se repara que Ford tenta, com a mesma energia, ultrapassar toda essa conotação política. Porque, com brilhante lucidez, este sabe que nenhum ser humano é apenas bom ou apenas mau, e porque sabe que o sentido de pertença a um determinado lugar (presencie este o que presenciar, como nascimentos ou mortes) é, apenas, outro indicador do natural egoísmo humano. 

Então filma a (perda da) fé em Deus, filma a força do grupo, insuperável até nos momentos mais tenebrosos (que lembram, de certa forma, as atrocidades que se passavam na Europa da Segunda Guerra Mundial, altura onde o filme foi lançado), filma a maldade dos tiranos, filma o protagonista, representativo do estado de solidão e perdição vividos, e filma-os entre uma Natureza complacente e atenta, em magníficos planos abertos e num belíssimo preto e branco. E tudo capta com imparcial afeição e compaixão, porque, e pedindo emprestadas as palavras da personagem da mãe de Tom (interpretada, brilhante e inesquecivelmente, por Jane Darwell), all that lives is holy.

sábado, julho 17, 2010

Duas sugestões

Bem pouco tem sido o tempo que possa aproveitar para vir aqui, ao blog, escrever sobre um ou outro filme que me tem agradado (em breve, espero, falarei d’As Vinhas da Ira, de John Ford) e, por outro lado, muita tem sida a vontade de partilhar convosco (mais) uma opinião a um dos grandes de Andrei Tarkovsky, Stalker, de que já falei nesta publicação. A análise foi escrita pelo Roberto, e sugiro aos leitores que lá passem e a leiam porque, de facto, sintetiza, com engenhosa percepção, aquilo que significa o filme para a humanidade. Se não conhecem, talvez seja a altura de abrirem os olhos e descobrirem a obra de mestre deste messias cinematográfico. 

E por falar em messias, sugiro, de igual forma, a leitura de um livro que muito me está a surpreender. Chama-se A Função do Cinema e das Outras Artes e foi escrito por Elie Faure num contexto em que o cinema era ainda muito precoce e cujas proporções e possibilidades se adivinhavam imensas. E é por esse adivinhar e sentido profético que Faure ficou assim conhecido… ler cada texto dele sobre a arte nova que entretanto o cinema era, é ler uma ode à sua importância, ao seu real valor, ao seu refulgente futuro. Efectivamente, o autor via o cinema como a mais importante das artes, a mais humanista, por implicar, quase necessariamente, o trabalho colectivo, e chega-o, a dada altura, a equiparar à arquitectura de um templo – por transcender a idealização do indivíduo criador, por ser fruto de uma coordenação harmoniosa entre os trabalhadores e pedreiros, por ser passível de ser utilizado e visto e sentido e até ultrapassado de múltiplas formas por todo o tipo de ser humano. Assim sendo, na sua opinião, o cinema caminharia pelo caminho da sabedoria, da luz e da compreensão máxima do homem, por eternizar cada gesto seu, seja feito em espontaneidade ou em ficção. Não deixa de ser irónico registar o seu actual desenvolvimento e visão massificada do mesmo, mas essa é, claro, outra história. Sim, sem dúvida,  penso e gosto de acreditar que o cinema fará sempre parte do nosso futuro como motor do nosso desenvolvimento moral e espiritual.

domingo, julho 11, 2010

Três grandes obras subvalorizadas

O Roberto, do conhecido blog Cineroad, convidou-me para mais um desafio: escolher três "grandes obras subvalorizadas" da passada década, a jeito de retrospectiva. A minha selecção pode ser verificada se clicarem na imagem de cima. Obrigado, mais uma vez, Roberto.

quarta-feira, julho 07, 2010

Peregrinação Exemplar

Numa terra onde a fé não se apresenta mais que uma fantasia de crianças e num mundo sem espaço para Deus, a humanidade entrega-se a si mesma, tomando toda a responsabilidade pelo seu fatídico destino. E Bresson não hesita, nesta simples alegoria lírica, em esclarecê-lo sob o olhar protagonista de um burrinho chamado Balthazar, santificado e divinizado até onde seria possível. Ver o naturalista e ascético Au Hasard Balthazar é, duplamente, sentir poesia em estado bruto e redefinir a perspectiva sobre a nossa própria existência. Isto porque a jornada “dúmbica” do burro, que assiste, em paralelo com as narrativas sociais que confluem com a dele, não é mais que uma contemplação do horror e crueldade humanas, do absurdo a que se fica sujeito desde a nascença. Mas o espectador não é livre de culpa. O espectador é parte, diria quase activa, daquele sofrimento e de toda aquela ridicularização e barbaridade, muito simplesmente por deixar que a desumanização prossiga com uma aparente e vil naturalidade. E a comoção que se nos dá, e as lágrimas que se deixam cair naquele esperado fim com o Bem rodeado do rebanho do Mal, tão certo como o correr de um rio, não são mais que os evidentes sinais de que é preciso, com urgência, rever a nossa fé, o nosso destino, a nossa estrada e o nosso final. Sim… grande, grande filme.

quarta-feira, junho 30, 2010

O Sacrifício



Porque Offret é belo, é lindo demais, é o filme mais puro do mundo. Porque Tarkovsky foi o maior de todos, porque Offret é uma despedida de génio, um singelo adeus com uma forte consciência de fé, de esperança, uma obra-prima com todas as letras.

Offret é uma obra na qual é possível perceber o desespero de Tarkovsky pelo fim que se aproximava, o fim… a morte que o viria buscar pouco tempo depois desta obra. E O Sacrifício é um filme melancólico por isso mesmo, por essa presença da procura do cineasta em deixar o seu legado dedicando o filme ao seu filho, pela certeza no fim que chegava. Offret é isso, o reunir de toda uma obra do cineasta num único filme, num filme imponente tanto visualmente (como seria de esperar) como filosoficamente. O existencialismo num estado puro de cinema, a fé dalguns e a falta desta noutros, o sofrimento duma vida, as decisões e os erros dessa vida, a esperança. E Offret é perfeito na transposição dessa fé para o grande ecrã, na contemplação que atinge, nos longos planos-sequência que apresenta - o plano da casa a arder é simplesmente brilhante, genial, extraordinário, imponente, duma destreza magnífica; o plano inicial é outro exemplo -, no naturalismo exacerbado, na beleza das cores.

Offret vagueia pelo mundo insano do cineasta, pelas questões que, mais do que nunca, assombram a mente de Tarkovsky, pela analogia a outro grande nome do cinema que foi Ingmar Bergman (não só pela língua mas pela palavra). Porque aqui, mais do que em qualquer obra do russo, a palavra está presente, as questões existenciais, o conto moral e existencial da árvore que depois de morta volta a florescer dada a insistência, a matéria do corpo e a espiritualização da alma - e daí o sacrifício em prol, mais do que da família e daqueles que ama, da humanidade.

Offret é belo, puro, é sobretudo uma lição de como fazer cinema. Obra-prima absoluta.
(retirado daqui; do blog Preto e Branco)

segunda-feira, junho 28, 2010

Lost in Translation

Há algo de profundamente humano e terno na estreia de Sofia Coppola no Cinema, algo de enormemente indescritível. Nela, reside uma força tão contemporânea como universal que molda a obra como uma autêntica carta de amor à mundividência social deste mundo, onde nunca houve tanto toque e proximidade entre cada um de nós e onde, também, nunca houve tanta distância e solidão. Sublime obra-prima.

sábado, junho 26, 2010

A morte do cinema português

Margarida Gil, realizadora e presidente da Associação Portuguesa de Realizadores (APR), reage com preocupação aos anunciados cortes na Cultura. “Vivemos um período muito perigoso, e esta é uma estratégia de corte que vem de trás”, diz a realizadora de “O Anjo da Guarda”, fazendo notar que esta “operação de putschismo” relativamente ao cinema já vem de 2004. E acusa a ministra de falta de diálogo com os realizadores, referindo que a APR lhe apresentou um completo dossier sobre a situação do cinema português, sem que Gabriela Canavilhas tivesse depois feito qualquer eco ou mostrado “qualquer interesse” em ouvir os realizadores sobre o futuro.

Margarida Gil diz que “o cinema português está já no limiar da sobrevivência”, e envolve muita gente que se encontra “sem trabalho nem perspectivas”. Considera que, com as medidas agora anunciadas, a ministra está a “tapar os horizontes deles com a maior das friezas”. “Não pode haver um país sem cultura e com ela a ser tratada desta maneira”.

A presidente da APR acredita, no entanto, que as pessoas irão “unir-se e reagir”, e isso deverá ser mostrado já na próxima segunda-feira, dia para quer foi convocada uma reunião aberta a todos os profissionais do cinema, em Lisboa.

Também Tino Navarro, presidente da Associação de Produtores de Cinema (APC), vê os cortes anunciados como extremamente “penalizadores” da actividade cinematográfica, e por isso manifesta “muita preocupação”. Mas o produtor considera que é preciso saber em que moldes é que vai ser feita a aplicação desses cortes e restrições no domínio do cinema. É isso que a APC espera ver esclarecido numa reunião já agendada para a próxima terça-feira com o presidente do ICA - Instituto do Cinema e do Audiovisual, José Pedro Ribeiro. Só depois desse encontro, a associação irá tomar uma posição clara sobre a situação.

O realizador e produtor António Ferreira, de Coimbra, vê “sem surpresa” o anúncio dos cortes na Cultura. “Estamos em crise, não vejo por que é que a Cultura iria ser excepção”, admite o realizador de “Embargo” (filme adaptado de um livro de José Saramago, e que tem estreia nacional agendada para 30 de Setembro). “Mas eu gostava era de ouvir falar na criação de uma nova Lei do Cinema que fosse um verdadeiro modelo de sustentabilidade e de autonomia para o sector, para que ele se liberte em definitivo da subsídio-dependência”, acrescenta António Ferreira, que considera prioritário alterar também a Lei do Mecenato, para criar mecanismos que favoreçam o investimento privado no cinema, e também na Cultura em geral, que “está no limite do viável”.

A uma semana do início da 18ª edição do festival Curtas Vila do Conde, Dario Oliveira, um dos membros da direcção, diz que esta estratégia de cortes generalizados é “uma forma perversa” de resolver a crise. “Que se corte na verba de aquisições para a Colecção Berardo e em muitos outros maus negócios que o Estado vem fazendo nos últimos anos, muito bem. Mas não nas condições de trabalho dos artistas e dos agentes culturais”, diz Dario Oliveira.

O programador critica Gabriela Canavilhas por aceitar esta forma de “operacionalizar as decisões do Governo” sacrificando, uma vez mais, “de forma cega”, o sector da Cultura. Relativamente ao festival de Vila do Conde e a outros festivais do país, Dario Oliveira diz que estes cortes “são injustos” e, utilizando uma linguagem futebolística, considera-os também “uma rasteira e uma atitude de muito mau tom”, porque significam “mudar as regras a meio do jogo”, algo que “ninguém pode aceitar”. Isto significa, na sua opinião, comprometer a possibilidade de realização de muitos festivais e também de produções cinematográficas que serão cortadas, e mesmo paradas a meio.
Cada vez menos acredito no funcionamento desta política de esgoto, assassina de tudo o que é criação artística. E, ao contrário do que transponho acima, também não acredito que, verdadeiramente, vá acontecer uma revolta, na certa acepção do termo, para que tudo isto regenere, para que o cinema português encontre a sua alma, o seu caminho. Para haver revolta tem que haver revoltados. E se, típicos e previsíveis como somos, nos mantivermos nesta eterna e passiva posição de espectador, nada se verá no plano da acção - nada de nada, e só alimentaremos uma raiva interior que rasga e mutila o que nos pertence. O que é o CINEMA num PORTUGAL perdido, sem futuro nem esperança? O que será toda a cultura, detentora daquilo que pode realmente dizer algo ao ser humano, numa terra onde abundam fait divers, fátimas, futebóis e fados e escassa o gosto pela arte? Não será. O cinema português morreu há muito tempo, e vivemos frente a um cadáver que insiste em marcar presença como um fantasma que não vemos mas está ali , a querer tornar-se corpo.

sábado, junho 19, 2010

Salò ou os 120 Dias de Sodoma


Há, sem dúvida, um problema, de ordem filosófica, que se insurge, até a contemporaneidade, a respeito de Salò, ainda hoje banido em inúmeros países, levado a público logo após o assassinato do realizador: serão os trabalhos de génio aqueles que conseguem reunir o consenso global do gosto da sociedade pelos mesmos ou, por outro lado, serão os que a abalam na totalidade e a dividem até onde seria impensável? Um filme destes, que, visto em superficialidade, se demonstra nojento, repulsivo e horrível, só pode ser considerado como tal à luz da camada que se lhe sobrevém. O espectro daquele que viveu no corpo revoltado e abominado de Pier Paolo Pasolini apresenta-se e, com ele, nos traz cento e vinte dias de Sodoma e uma obra-prima que ficará nos pilares do cinema como arte autêntica.

Ambientado no regime, ditatorial e repressivo, de Mussolini, na Itália da fase terminal da Segunda Grande Guerra, a película, altamente simbólica em constituição cénica e de narrativa, subdivide-se, de forma análoga ao Inferno de Dante, em quatro segmentos – ante inferno; ciclo das manias; da merda e do sangue –, que progridem, em alucinante força, pelas experiências que quatro homens, de grande influência e poder, exercem sobre três meias dúzias de jovens, rapazes e raparigas, de desregramento, humilhação, dominação sexual e animal, diabólica tortura e morte. Efectivamente, a obra poderá ser entendida sob dois pontos de vista, um político, que subjaz toda a substância tratada nesta e, outro, sexual.

Sem qualquer tipo de dúvida, este golpe de mestria cinematográfica é, antes de tudo, um grito de intervenção – de revolta política, de alerta, de medo. Sendo um tratado sobre a fragilidade humana, Pasolini, que vivera de perto o regime fascista, rebela-se contra o absolutismo, e realiza, aqui, um trabalho de tremenda forma democrática e livre de qualquer tipo de vergonha e que critica, com energia, um mundo guiado pelo desenvolvimento da animalidade, cuja ideia de homem ideal passava pelo seu comportamento andróide, maleável e obediente, destituído de razão, sensibilidade e humanismo. Apesar de se apoiar em Nietzsche com o ultra-realismo (ou derrotismo) com que filma esta tragédia, o cineasta admite a mal interpretação que o seu Gott ist tot adquiriu neste contexto, dando a ilusão de que a perda da fé da existência de Deus poderia liberar o ser humano de qualquer tipo de atitude, incluindo o poder do homem sobre o homem, se essa fosse a sua vontade. O italiano comete, assim, um acto de pura libertinagem ao denunciá-la a ela mesma, como se fosse absolutamente necessário condenar o extremismo pelo extremismo. Não nos admirará que não só se aponte o dedo à corrupção, ao domínio individualista e ao egotismo com imagens altamente repulsivas, como também se ensaie sobre a delação em tempos de ditadura (a sequência dos escravos denunciados atraiçoarem os companheiros com facilidade é bem ilustrativa do que acabo de referir). É, aliás, nesta cena passível de ser vista como ridículo entretenimento, que, também, se identifica a alienação completa dos direitos humanos (que deveriam, a priori, ser tomados como bases implícitas de todo o nosso comportamento) nestes indivíduos que são tomados como pura carne sem alma ou raciocínio (abaixo, como encenam, de cão ou de merda): o facto de denunciarem as incorrecções dos companheiros é motivado não pelo sentido de quererem permanecer vivos mas, sim, duplamente, pelo sentido de serem privados da tortura e do castigo e de serem acompanhados numa humilhação agrupada. Porque, aqui, ficar vivo é mil vezes pior que morrer e porque, num regime autoritário, não se age correctamente para se merecer a liberdade – age-se correctamente para se merecer a possibilidade de não se ser castigado pelos supremos. Esta ideia, obviamente infernal, e paralela à circunstância behaviourista de transformar alguns dos escravos em personificações dos seus déspotas, mostra, com infeliz exactidão, o ponto a que Pasolini quer chegar com a sua poderosa alegoria política e ética: a conclusão de que os valores universais de justiça e de liberdade estarão eternamente condenados à lei do mais forte e ao triunfo do egocentrismo e do relativismo moral.

Por outro lado temos, claramente, a exploração do sexo até o impensável e das pulsões orgânicas e inconscientes do ser humano. Sem pudor, navega-se até o limite da mente de cada indivíduo, onde o bem não é o valor que vinga em última instância, mas o princípio do prazer, da mórbida e freudiana curiosidade pelo macabro, pela experiência e pela violência sadomasoquista, seja física, seja psicológica. Não obstante, este trabalho não se aproxima, nem de longe nem de perto, das produções de cariz pornográfica (que se baseiam na estimulação do observador pelo sexo reproduzido), pelo que este, o sexo, é perspectivado como forma última, não de deleite, mas de punição, degradação e primitivismo. E, apesar de Pasolini captar, com exímia atenção, a efervescência carnal dos quatro homens, repugnantes como simplesmente os podemos classificar, pelos temas mais improváveis (onde se incluem o sofrimento de outrem e a própria morte), demonstrando o carácter animal, desconhecimento e tabu do ser, o realizador revira-se, com engenhosa subtileza, para o próprio espectador, retirado com os seus invisíveis binóculos, desumanizando-o. Aqui, a pior das personagens somos nós. Afinal, por que assistimos ao filme se, em superfície, é um espectáculo zoológico de degradação e barbaridade? E que legitimidade temos de julgar as atitudes daqueles tiranos se assistimos, impotentes, a todas elas?

É precisamente aqui que reside a ferida aberta que tanto divide o mundo em relação a Salò e o último golpe de génio de Pier Paolo Pasolini: o facto de este filme, obra-prima como importa reforçar, confirmar o início de uma nova era, a do sodómico voyeurismo pela banalização e gosto da morte e da crueldade humanas.