domingo, agosto 30, 2009

:Agosto & Gus Van Sant: quadro-síntese



(Clicar na imagem para aumentar)

:Gerry


Yourcenar escreveu, num dos seus contos orientais, que aquilo de que somos falhos é de realidades e Gerry, que se afigura como a mutação máxima de todo o estilo de Gus Van Sant, quer anterior como posterior, vem a confirmar a veracidade desta afirmação. Ainda que não perfeito, o argumento, fotografia, som, música assombrosos e metafóricos, em natural e sublime uníssono, fazem com que possamos conceber, em poucas palavras, a obra como uma colossal experiência estética, metafísica, filosófica e espiritual como poucas outras conseguem sê-lo, merecedora, seguramente, de mais do que uma visualização atenta. Gerry é Gerry; uma autêntica, silenciosa e por muitos incompreendida alegoria sobre a vida, a morte e todos os mistérios que se intercalam no meio.
10/10

Gus Van Sant - Revisitando a sua obra




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sexta-feira, agosto 28, 2009

:Psycho Re-imaginado



"Gus Van Sant has been hearing one question put to him a lot these days. The question is, WHY? Why would anyone--least of all the idiosyncratic director of "Drugstore Cowboy" and "Good Will Hunting"--want to do a remake of "Psycho"? Not, mind you, a remake that reinterprets and reinvents the classic 1960 Hitchcock shocker but one that apparently duplicates the original virtually line by line and shot by shot, only this time in color? Van Sant, 45, may be the only person puzzled by the question. "I wasn't really aware that I had crossed some bounds. Why are they asking why? For me there are many, many reasons: the biggest reason of all is that nobody's ever done it." [Fonte]

Três questões: será que temos legitimidade de avaliar uma obra que não é original de todo e que copia, cena por cena, um clássico do cinema?  Qual acham ser a razão central de ser deste remake (desta vez, no verdadeiro sentido do termo)? Consideram válido classificar o filme como uma "obra de arte"?
Não deixem de opinar! Próxima crítica (final do especial Gus Van Sant): Gerry

:"Under the Bridge" (Red Hot Chili Peppers)



Um dos (muitos) videoclips realizados por Gus Van Sant - como o poderemos confirmar numa lista que muito brevemente publicarei - e que deixaram a famosa música dos Red Hot Chili Peppers.

:"Fame '90" (David Bowie)



Um dos (muitos) videoclips realizados por Gus Van Sant - como o poderemos confirmar numa lista que muito brevemente publicarei - e que deixaram a famosa música de David Bowie (que surgiu na banda sonora de Milk).

quinta-feira, agosto 20, 2009

:Paranoid Park





Finda a trilogia da morte (Gerry / Elephant / Last Days), poder-se-ia, precipitadamente, adivinhar malogrado o futuro da carreira de Gus Van Sant, dada a má receptividade da última fita apresentada em Cannes. Ainda assim, depois de dois anos de trabalho, este não renunciou do estatuto de um dos mais proeminentes realizadores avant-garde da contemporaneidade e mergulhou de novo no festival com Paranoid Park, a adaptação do romance homónimo de Blake Nelson e uma obra ousadamente familiar no que à temática diz respeito. Escusado será dizer que foi, uma vez mais, extremamente bem sucedido.
Paranoid é, tal como o irmão Elephant, um ensaio sobre o estado moderno de uma adolescência perdida, indolente, desinteressada e vivida em facilitismos, mas, ao contrário deste, com motivações dostoievskianas e de forma mais directa, explora, em específico, a noção de culpa interior e consequente autodestruição, o “acaso determinista” e o absurdo, debruçando-se, tal como já é típico nos filmes do cineasta, sobre uma minoria social — neste caso, os skaters (e, para quem estiver interessado, após o texto deixo-vos com a versão dos Youth Group da Forever Young, que os homenageia). Apesar da forma mais directa e menos dada a reflexões posteriores, a fita é rica em detalhes que, se vista superficialmente, podem passar por despercebidos (por exemplo, a paixão silenciosa de Macy pelo amigo Alex é-nos sugerida numa cena entre muitas outras onde Van Sant capta as suas irrequietas e indecisas mãos, no autocarro), assim como é rica em cenas que, no seu todo, nos são transcendentes. E que exemplo mais edificativo do que a inesquecível cena do banho? Iniciando-se com uma clara alusão ao (escusadíssimo) remake que realizara de Psycho, técnica e metafisicamente tudo se encontra em perfeita harmonia (o som, a cor, a água, os azulejos) para tão desarmoniosa e melancólica remição: Alex deixa-se caído na culpa e vergonha, como se acreditasse que, com aquele duche, tudo fosse resolvido. Há que aplaudir, então, o desempenho do inexperiente Gabe Nevins, o único a sobressair-se verdadeiramente numa mescla de péssimas actuações (Van Sant, contudo, escolheu os amadores ao dedo, de acordo com a sua própria personalidade e tiques, o que me resta concluir que os restantes não representavam autenticamente).
O filme é servido, respeitante à realização e à narrativa, como uma espécie de catapulta para o futuro Milk, contrabalançando a sua arte com a agradabilidade fácil entre o público, que se estende com estas duas obras. As semelhanças visíveis são notórias: ora porque ambas histórias são versadas na primeira pessoa (comprometendo, por conseguinte, a ordem e sequencialidade das cenas), ora porque é ressuscitado um prazer peculiar de Van Sant demonstrado, antes, apenas com Mala Noche — o de intercalamento entre imagens de ficção e documentais, através da diferença do modo de filmagem (mais livre e amador) e da fotografia (que se apresenta como se de uma verdadeira super 8 se tratasse). Este segundo aspecto (utilizado para reforçar um provável realismo ou, alternativa antagónica mas não menos plausível, a ideia de um mundo interior e independente do físico) só vem a engrandecer o complexo e assombroso esforço de Christopher Doyle que consolida aqui o que de melhor consegue fazer na edição da imagem. E, para podermos, igualmente, analisar o sentido metafísico e alegórico deste tipo de cenas (e não só) há que, forçosamente, referir o magnífico trabalho no design de som de Leslie Shatz e, ainda, da banda sonora musical de que o filme é bem recheado. Enquanto a tonalidade das cores, da iluminação e da focagem é alterada em função do estado da mente desenfreada da personagem (por exemplo — um de muitos —, após a morte do segurança somos brindados com um soberbo plano geral de uma vertiginosa trovoada), o som também é utilizado de uma forma bastante particular e não convencional: ora com a emprestada d’O Bom Rebelde “Angeles”, de Elliott Smith, ora com as composições do falecido italiano Nino Rota, dos filmes de Fellini. Assim, toda esta relação imagem / som / sujeito, articulada, resulta, belamente, em cenas que exaltam a pretendida intersubjectividade fantasiosa das situações e, principalmente, o solipsismo de que é própria a trilogia da morte e Paranoid Park, tão subtilmente defendido pelo realizador.
Esta obra é, sem margem para qualquer tipo de dúvida, uma admirável revisita ao colossal Elephant e uma excelente adaptação literária conseguindo, ainda assim, com uma linha narrativa mais convencional, aproximar-se imenso da magnificência e inovação estilística, impondo-se como um inesquecível marco na filmografia van santiana.
9/10






quarta-feira, agosto 12, 2009

:Os Filmes de José Saramago


Até grandes escritores têm filmes que marcaram a sua vida e, portanto, é com prazer que partilho convosco três publicações que o Prémio Nobel da Literatura português fez no seu blog público, as quais transcrevo de seguida e recomendo vivamente a leitura:

Charlot (18/05/2009)

Numa destas últimas noites vi na televisão alguns filmes antigos de Chaplin, a saber, dois ou três episódios nas trincheiras da primeira guerra mundial e um filme mais extenso, “The Pilgrim”, que, retoma, com menos felicidade que noutros casos, o tema recorrente de um Chaplin sem culpas procurado pela polícia. Não sorri nem uma única vez. Surpreendido comigo mesmo, como se tivesse faltado a uma jura solene, dei-me ao trabalho de tentar recordar, tanto quanto me seria possível oitenta anos depois, que risos, que gargalhadas me terá feito soltar Charlot nos dois cinemas populares de Lisboa que frequentava quando tinha seis ou sete anos. Não recordei grande coisa. Os meus ídolos nessa época eram dois cómicos suecos, Pat e Patachon, que esses, sim, eram, para mim, autênticos campeões da gargalhada. Continuando a reflectir com os meus botões, sempre bons conselheiros porque em princípio não mudam de casa nem de opinião, cheguei à inesperada conclusão de que Chaplin, afinal, não é um cómico, mas um trágico. Repare-se como tudo é triste, como tudo é melancólico nos seus filmes. A própria máscara chaplinesca, toda ela em branco e negro, pele de gesso, sobrancelhas, bigode, olhos como pingos de alcatrão, é uma máscara que em nada destoaria ao lado das representações plásticas clássicas do actor trágico. E há mais. O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse.

Cinco Filmes (23/07/2009)

Cinco filmes me foi pedido que recordasse. Não teria de precocupar-me se seriam ou não os melhores, os mais famosos, os mais citados. Bastaria que me tivessem impressionado de maneira particular, como nos impressiona um olhar, um gesto, uma intonação de voz. Escolhê-los não foi difícil, pelo contrário, apresentaram-se-me com toda a naturalidade, como se não tivesse andado a pensar noutra coisa. Ei-los, então, mas a ordem por que os menciono não é nem deve ser tomada como uma classificação por mérito. Em primeiro lugar (algum teria de abrir a lista), “O sal da terra” de Herbert Biberman, que vi em Paris no final dos anos 70 e que me comoveu até às lágrimas: a história da greve dos mineiros chicanos e das suas corajosas mulheres abalou-me até ao mais profundo do espírito. Cito a seguir “Blade runner” de Ridley Scott, visto também em Paris num pequeno cinema do Quartier Latin pouco tempo depois da sua estreia mundial e que, nessa altura, não parecia prometer um grande futuro. Sobre “Amarcord” de Fellini, desse, ninguém teve nunca dúvidas, estava ali uma obra-prima absoluta, para mim talvez o melhor dos filmes do mestre italiano. E agora vem “A regra do jogo” de Jean Renoir, que me deslumbrou pela montagem impecável, pela direcção de actores, pelo ritmo, pela finura, pelo “tempo”, enfim. E, para terminar, um filme que me acode à memória como se viesse da primeira noite da história dos contos à lareira, “Pat & Patachon” moleiros, aqueles sublimes (não exagero) actores dinamarquese que me fizeram rir (tinha então seis ou sete anos) como nenhum outro. Nem Chaplin, nem Buster Keaton, nem Harold Lloyd, nem Laurel e Hardy. Quem não viu Pat & Patachon não pode saber o que perdeu…

Almodóvar (05/08/2009)

Cheguei tarde à “movida”, quando ela já tinha deixado os seus trajes de arlequim urbano, as suas lágrimas falsas de rimel negro, os seus postiços, as suas perucas, os seus risos e a sua tristeza. Não quero dizer que as “movidas” sejam tristes por definição, o que digo é que têm de se esforçar muito para não deixar que lhes saia da boca, no meio da festa e da orgia, a pergunta definidora: “Que faço eu aqui?” Atenção, estou contando uma história que não é minha. Nunca fui homem para “movidas” e se alguma vez acontecesse deixar-me seduzir, estou certíssimo de que não faria melhor figura que D. Quixote no palácio dos duques. O ridículo existe de facto, não é unicamente um ponto de vista. Posto isto, creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da “movida” madrilena, a perguntar à sua pequena alma (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis): “Que faço eu aqui?” A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi “Volver” enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: “Tocaste a beleza absoluta”. Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu.
Devo concluir. De uma forma decerto inesperada para quem está mal gastando o seu tempo a ler estas linhas, e que resumo assim: a Pedro Almodóvar espera-o o grande filme sobre a morte que vem faltando ao cinema espanhol. Por mil razões, sobretudo porque essa seria a maneira de recuperar dos escombros o sentido último da “movida”.

segunda-feira, agosto 10, 2009

:Last Days - Últimos Dias




Depois do aclamado internacionalmente (e, bastante previsivelmente, ignorado pela Academia norte-americana) Elephant, muitas eram as expectativas criadas para aquele que seria a última película da apelidada “trilogia da morte”, pelo menos daqueles a quem o realizador tinha, nesta sua década dourada, comprazido. E, apesar de me parecer óbvio que estou perante uma produção cinematográfica inolvidável com este Últimos Dias (felizmente não os da carreira dele!), é-me difícil não admitir que não é pelos motivos mais positivos. Onde errou Gus Van Sant? E por que o fez? Talvez, provavelmente, por se ter perdido no seu próprio mundo, tal como Blake o fez.
Não é já visível o cuidado com que o realizador trata as suas personagens (que, como já o sabemos, também se vão construindo em função da criatividade dos actores), prendendo-se unicamente, desta vez, aos cânones inovadores por si criados nos precedentes filmes e abandonando, por completo, o protagonista com os seus demónios incorpóreos. O anonimato deste, a falta de um mínimo de conhecimento de que temos sobre ele (que impossibilita, como consequência, a nossa afinidade) e a completa e inumana distância estabelecida com todos os seres vivos no filme, tudo isto, apesar de deliberado e, efectivamente, revolucionário, confunde-se, infelizmente, com a aparente incapacidade de Van Sant em ser valente o suficiente para filmá-lo e fazer-nos senti-lo, em toda a sua amargura e desvairamento. O cineasta, com este trabalho, consegue decepcionar os seguidores mais fiéis à sua filmografia e estilo, e faz com que tudo o que capta, apesar de, em termos estéticos, belo e em sintonia com a natureza, se afigure excessivamente imponderado, cansativo e desnecessário, levando à tela más imagens e cenas sequenciais (umas improvisadas, outras não) que nada trazem de novo ou significam.
Esta fraqueza de Gus repercutiu-se, felizmente em força menor, também na manifestação das interpretações dos diversos actores que compõem Last Days, especialmente na de Michael Pitt (o mesmo que nos presenteara já com uma representação respeitável no magnífico “Os Sonhadores”), que se encontra, aqui, em completa metamorfose física e mental e que poderia ter mostrado muito mais de si. É, muito provavelmente, a sua prestação inquietante e, portanto, inesquecível que consagra o clímax da fita, a par da fotografia e som magníficos, assim como umas poucas cenas que contrabalançam todo o cenário negativista que desta película fui, até agora, traçando. Exemplo mais edificativo do que o maravilhoso vídeo situado depois deste texto não se poderia encontrar, transportando-nos, de uma forma brilhante, para a revolta e pesar de que o músico vivia. Estranhamente, ou talvez não, esta foi uma das poucas cenas eliminadas do produto final do filme...
Last Days é, na falta de melhor expressão, um interessante mas pretensioso e reciclado faits divers, tentativa que poderia resultar numa magnificência que o elevaria ao estatuto das melhores obras do realizador não fosse o seu erro crasso em ter seguido caminhos menos certeiros no que à concretização geral da obra diz respeito.
6/10

:Impressões de...


Cannes é uma cidade linda. Ainda mais, talvez, com menos calor. Próxima crítica: Last Days.

quinta-feira, agosto 06, 2009

:"Elephant" vs "2:37"

A propósito da crítica já publicada de "Elephant", motivada pelo especial que este blog, o Cineroad, o seeSAWseen e o Split Screen estão a fazer a Gus Van Sant, deixo-vos aqui uma bem executada e curiosa comparação entre o filme e "2:37", de Murali K. Thalluri, lançado três anos depois do vencedor da Palma de Ouro. Fica a questão: será 2:37 uma homenagem ao filme marcante deixado por Van Sant ou, realmente, uma cópia deste?

terça-feira, agosto 04, 2009

Elephant - a obra-prima de Gus Van Sant


Dia mais infame e justiceiro nunca vi, rumoreja o rapaz, para si mesmo ou, hipótese que nos parecerá mais certeira, para o mundo. Encontramo-nos num belo e outonal dia de escola, que não se poderia assemelhar mais a todos os outros, mas que, por motivos cuja razão ainda nos é transcendente, terminará de uma forma particularmente diferente.

Van Sant consolidou, com esta película aplaudida e premiada por Cannes com a cobiçada Palma de Ouro e o prémio de melhor realizador, o seu estilo de filmagem único e memorável. Apesar de serem enormes as comparações que podemos estabelecer com a curta-metragem homónima de Alan Clarke em 1989 (cuja aconselhável visualização pode ser feita nas opções especiais do DVD), existem alguns elementos próprios de Gus, dos quais passo a nomear quatro. O primeiro, que é o mais saliente, é, claramente, a sua capacidade excepcional de encontrar beleza, estudar e “espiar” as suas personagens pelas costas, como se não as conhecesse, como se os nossos olhos estivessem realmente naquele estabelecimento público e assumissem a visão de um aluno que deambulava, vagarosa mas intensamente, pelos seus incontáveis corredores. Mas que mais poderá sugerir esta decisão de vermos, por detrás, estes humanos que nos são sempre desconhecidos? Talvez nos sirva de uma metáfora visual, que aponta o dedo para a terrível conformidade, indisciplina e revolta de que vivem os alunos (ainda que pensem estar em plena personalidade, se quisermos usar o termo específico da filosofia que Kant nos deixou), ou para a sua desconsideração dos olhares que lhes são alheios (os nossos, portanto) ou, ainda, para a sua procura infinita da sua verdadeira e escondida identidade (referência possível a René Magritte?). A segunda “marca de autor” que é amplamente visível é o gosto pelos longos takes que tem o cineasta, assim como a preocupação de não contar a história com um tempo linear, percorrendo assim, de forma um tanto surreal, a escola com uma poética e impressionista steadycam que nos permite ter uma visão integral do mundo onde as formigas vivem, sem notarem a nossa presença. Em terceiro lugar temos, também característico do estilo van santiano, a filmagem notória do realizador em 180º, cujo possível significado alegórico já foi, por mim, pressuposto na crítica que escrevi de “Milk”. E, por último, mas certamente não menos curioso, é a forma como o realizador decide fazer dos actores elementos estruturais do processo criativo de como é avançada a obra, pela improvisação de falas e acções, através de um subtexto previamente fornecido.

O realizador dá, então, um significado diferente ao termo “narrativa” e, ainda assim, consegue, ao debruçar-se sobre temas tão banais como a sexualidade, o bullying, o preconceito, as minorias sociais e as desordens alimentares na juventude, construir um universo onde o absurdo é engrandecido para que, ao vermos as coisas num plano externo e superficial, nos apercebamos da incoerência própria da nossa sociedade. E, apesar deste inegável realismo de que é característica a fita, podemos encontrar indícios simbólicos e trágicos ao longo da “história” que nos é contada — nos planos do céu em fast forward, no uso dos sons da natureza como eufemismo directo da realidade, ou das próprias Für Elise e “Moonlight” Sonata de Beethoven (ligação directa a “Laranja Mecânica”, de Kubrick, realizador preferido de Van Sant?). O som e a fotografia, são, portanto, dois factores cinematográficos enaltecidos para a modelação do universo “elephantiano”. Ao vaguearmos atrás daqueles humanos sentimos que tudo parece difundir-se no ar em redor deles — os sons nítidos e típicos de um ambiente escolar (risos, conversas e afins) sofrem uma metamorfose quase alienígena e convertem-se em ruídos imperceptíveis à nossa inteligência, tal como conseguimos ver que, progressivamente, o mundo físico começa a perder cor e a sofrer um grandioso desfoque à medida que as personagens se iam perdendo nos seus pensamentos. Destaca-se, dessa forma, o magnífico esforço tido pelo cinematógrafo Harris Savides (que surgiu já em filmes como o meticuloso “Gerry”, de que falarei em breve, “Last Days” e “Milk”). Brevemente poderemos ver o seu trabalho no mais recente de Woody Allen (“Whatever Works”) e no de Sofia Coppola (“Somewhere”).

Na segunda metade do pequeno filme entramos na mais sufocante e brutal fase — a do massacre. A cada disparo que ouvimos dentro daqueles sombrios corredores, somos atingidos com a terrível apreensão da singularidade de uma só vida, algo que constante e diariamente é desvalorizado pela sua infinda banalização feita pela comunicação social, pelos videojogos, pela literatura, música ou, como não podia também deixar de ser, pelo próprio cinema. Em jeito de breve referência, o massacre ocorrido recentemente numa escola secundária na Alemanha gerou um grande debate relacionado com a adolescência e o respectivo papel da escola. Ainda assim, onde se homenageavam as vítimas chegavam-se a ver escritas questões simples como “warum?”. Porquê? Por que desceu alguém tão baixo ao ponto de, a sangue frio e aleatoriamente, retirar as vidas que pulsavam em distintos anónimos? Elephant, simplesmente, pretende manter-se na sua suposta ignorância e não responder, pelo menos de forma directa, a esta questão, nem a qualquer de outro tipo que interroguem, por exemplo, as motivações do massacre de Columbine em 1999. Contudo, várias são as cenas em que podemos lançar especulações que expliquem os comportamentos dos dois assassinos: lembremo-nos, por exemplo, de uma cena belíssima onde Alex se encontra na cantina escolar, de cabeça escondida e mãos postas na nuca, rodeado por centenas de alunos a almoçar, apavorado pela imensidão daquele som abafador que nos é progressivamente aumentado, sugerindo-nos, talvez, o completo delírio mental por que passava a personagem ou, possibilidade merecedora de reflexão pessoal, a sua completa lucidez…

Por outro lado, o filme não é niilista e não se limita a oferecer um morticínio gratuito — muito pelo contrário. Escondido na aparente barbaridade e crueza com que os assassinatos nos são sequencialmente exibidos está uma sensibilidade única que só Van Sant e poucos demais conseguiriam atingir. Mais explícita está ela quando começamos a estudar as emoções dos personagens nestes casos limite: enfrentando o medo, quebram-se as fronteiras invisíveis que nos separam, e a máscara das aparências que nos esconde é retirada. Sobe-se, verdadeiramente, à condição de humano. E a questão orgânica é inevitável: será que é necessário chegar-se a este ponto para que mudemos de mentalidades, acções, e políticas? É por trazer ao sol tantas questões que o final da película é quase perfeito. Quem ditará o seu verdadeiro fim: o último tiro? Ou a mudança social que, embora possível, não se fez até o momento?

“Elephant” é uma sublime e inesquecível obra-prima dos tempos modernos, e que é, mais do que uma chamada de atenção para o estado preocupante da nossa educação, um refulgente e melancólico ensaio sobre a vida e a morte, sobre a violência e sobre a puberdade, espelhada tão magnificamente numa escola de qualquer género, de que a sociedade contemporânea insiste em não sair.
Artigo actualizado dia 18/04/2010

segunda-feira, agosto 03, 2009

:Paris Je T'aime ("Le Marais")



Aproveito que hoje, oficialmente, entrei em território francês para escrever em breves linhas o que achei de uma das muitas curtas-metragens que Gus Van Sant  nos deixou (como poderão verificar num artigo que em breve publicarei respeitante à obra do cineasta) e, também, como não podia deixar de ser, partilhá-la convosco. Chama-se ela Le Marais e, escrita e realizada especialmente para se enquadrar na fantástica série do “Paris, Je T’aime”, centra-se no primeiro contacto que dois homens têm no histórico (e muito propício ao romance) bairro parisiense. Reunindo Elias McConnell (o mesmo que fez de fotógrafo em “Elephant”), cuja personagem é conhecida pela a de Gaspard Ulliel ("Um Longo Domingo de Noivado"), a curta traz-nos um olhar belo, subtil e, também, ainda que inicialmente nos possa parecer paradoxal, muito intenso e profundo do início de uma relação que promete ser frutífera. Homenageando uma área de França onde se situam locais dirigidos à comunidade gay, exploram-se aqui temas como a valorização do amor e os obstáculos que este encontra (como, por exemplo, o choque entre culturas). Vejam-na, vale bem a pena!


Quanto ao especial “Agosto & Gus Van Sant”, a primeira crítica que publicarei muito brevemente será à que considero a obra-prima do cineasta: Elephant.

sábado, agosto 01, 2009

:Agosto & Gus Van Sant




Gus Van Sant é, provavelmente, um dos mais geniais visionários contemporâneos da sétima arte. Multifacetado e incrivelmente talentoso, o americano expressa-se não só na literatura, música ou fotografia, mas principalmente nas diversas películas que realiza.
Nesse sentido, é com grande felicidade que o CINEROAD, o  seeSAWseen e o Split Screen, em iniciativa conjunta com este blog, promoverão a obra van santiana neste mês de Agosto, através de críticas e diversos outros artigos, esperando agarrar e incitar a curiosidade e o debate daqueles que viram pouco ou nada do cineasta.
Agosto terminará com a divulgação de um quadro-síntese com os filmes classificados pelos autores, assim como a eleição do seu preferido.
Na lista que se segue poderão ler as críticas dos filmes de Van Sant, já disponíveis nos blogs acima anunciados.