sábado, janeiro 24, 2009

As Canções de Amor


É curioso: procurando imagens de "Les Chansons d'Amour" pela Internet, não encontrei nenhuma que contenha a personagem de Grégoire Leprince-Ringuet, Erwann, apesar da sua inegável importância para a personagem principal, Ismaël. Não que a que escolhi seja desadequada, porque ilustra perfeitamente a premissa de que parte o filme, mas que está longe de ser uma realidade no final da fita. É um aparte com importância duvidosa, e é provável que estejam a pensar "que raio de introdução". Pois bem, "As Canções de Amor" é um musical que aparenta um filme "ligeiro", mas que acaba por ser uma profunda ode a esse sentimento incansavelmente explorado no mundo das Artes.

Cristophe Honoré escreve e realiza, então, um musical sobre três personagens (Ismaël, Alice e Julie) envolvidas numa relação cuja natureza desafia as convenções, e que se vêem confrontados com a realidade e as consequências das suas escolhas após um evento trágico que envolve um deles. Aliás, "confrontados" não será o termo mais preciso, uma vez que sempre que o assunto vem à tona, todos parecem encarar a sua situação como algo de bizarro, complicado, embora agradável (e conveniente), pois o mais certo seria que, sem Alice, já nada existisse entre os outros dois (algo sugerido até numa das músicas iniciais, e desenvolvido consequentemente).

Existem semelhanças que ligam este "Les Chansons d'Amour" a "Once" e a "The Dreamers". Com o primeiro partilha a naturalidade com que as canções surgem durante a projecção - apesar de aqui elas se tratarem de desabafos, conversas que as personagens mantêm entre si, enquanto que "Once", não esquecendo a vertente musical, encarava-a de forma mais "realista", nunca colocando as suas personagens a cantar como modo de comunicação usual na sua rotina diária-; relativamente ao segundo, o que os assemelha é o facto de retratarem uma relação a três. Como musical, a estrutura de "Les Chansons d'Amour" é idêntica à do "The Phantom of the Opera" de Joel Schumacher, mas aproxima-se de "Once" através do seu cenário actual e urbano.

As músicas (que dão título ao filme e que são, no fundo, o seu cerne) celebram os sentimentos das personagens, focando, como é óbvio, o amor, nas suas mais variadas formas. Combinam bem com o que é apresentado e têm letras muito interessantes. Nelas é discutido o amor maduro por oposição ao amor mais juvenil e inconsequente, a forma como as personagens são influenciadas pelo ambiente em redor, etc. Aprofundar este aspecto seria revelar demasiado do que acontece após a primeira parte (elas são três, "Le Départ", "L'absense", "Le Retour"), por isso fico-me por aqui e deixo que descubram, portanto, a que se referem os títulos que separam os diferentes momentos da história.

"Les Chansons d'Amour" é ambientado numa Paris cinzenta e chuvosa, detalhe que espelha as personalidades das personagens, cujas acções oscilam constantemente e nem no fim se enquadram no "preto" ou no "branco". Refiro-me, como é óbvio, à jornada de Ismäel, uma vez que Alice encontra a sua conclusão ao ajudar o amigo. O final do filme, e aquele que é dado à personagem, decerto que será controverso e incompreendido. Contudo, não me pareceu que destoe do realismo que até aí caracterizou a história; aliás, a meu ver, tudo no filme é apresentado com uma naturalidade que, não sendo ingénua (antes pelo contrário), lhe confere um ar muito próprio e uma honestidade invulgar.

Não me surpreendeu que "Les Chansons d'Amour" fosse tão bom, dados todos os louvores que lhe foram prestados. Trata-se de um bom exemplar do cinema francês da actualidade, que vale muito a pena ser visto. A jeito de conclusão, deixo a melhor frase do filme (aparentemente, ela própria uma citação): "Aime moi moins, mais aime moi longtemps".

quinta-feira, janeiro 22, 2009

:Algumas notas em dia de nomeações


Quase me esquecia que hoje anunciavam os nomeados da Academia! Para quem perdeu a lista, faça favor de clicar aqui e ir directo ao IMDB :P No ano passado, como já costuma habituar-me a cerimónia, o filme que mais desejava que ganhasse as nomeações não levou nada: 2006, "Brokeback Mountain" para melhor filme e actor; 2007, "Babel"; 2008, "Expiação". Este ano, torço por muitos, e a batalha é, digo eu, bastante renhida. De qualquer das formas, eis algumas opiniões sobre os nomeados:
  • "O Estranho Caso de Benjamin Button" com 13 nomeações (!) e "Quem Quer ser Bilionário?" com 10. São, lá está, os principais candidatos à categoria máxima: e "Milk" aproxima-se da luta não muito timidamente: 8 Oscar não era algo que esperava, mas fico bastante feliz. De todos para melhor filme, quem merece ganhar? Não sei, ainda. Vou esperar para vê-los (aos três, principalmente) e depois lanço alguma aposta.
  • Ora.. e "O Cavaleiro das Trevas", onde está? Pois: não está. Nem na categoria de melhor filme, de melhor realizador ou de melhor argumento - apenas Ledger com uma nomeação e o resto das categorias técnicas. Substituindo o lugar, mais ou menos, do filme, está "The Reader", com Kate Winslet, nomeado para 5 Oscar.
  • Para melhor actor a guerra abre-se principalmente entre Sean Penn ("Milk") e Mickey Rourke ("The Wrestler"). Apesar de Penn ter recebido mais prémios (destacando-se o da New York Film Critics Circle), acho, muito sinceramente, que Mickey tem mais oportunidade de ganhar.
  • Prémios (mais do que) garantidos: "Wall-E" (6 nomeações) para melhor filme de animação e Heath Ledger para melhor actor secundário. 
  • "A Turma" e "A Valsa com Brashir" competem para melhor filme estrangeiro.
Mais uma noitada sem pregar olho. Este ano, que ao menos valha a pena.

terça-feira, janeiro 20, 2009

:'Tá bem

O País a caminhar para o caos e a miséria e as propostas dos xuxas são as da pouca-vergonhice! Pobre país, ao que chegaste! O único consolo é que a avançar a proposta do "casamento" de panascas, não será possível descer mais fundo.
Tendo pouco tempo para ir comentando as maravilhas que se me vão surgindo, no que à proposta de Sócrates no passado Domingo, à segunda nova greve dos professores, à crise financeira e à subida de Obama à presidência dos Estados Desunidos diz respeito, deixo-vos apenas com esta citação, que retirei gentilmente do jornal Público e que ilustra quase na perfeição a sociedade em que vivemos.

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Férias em Roma

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A comédia romântica é um género ingrato. Nos dias de hoje, tem contra si o facto de ser direccionada muito acentuadamente ao público feminino (o que afasta muitas vezes o público masculino da sua visualização), e o de ser um género onde a inovação é muito pouca; aliás, arrisco-me até a dizer que, se ao filme lhe fosse dado a optar, decerto que a comédia romântica seria das últimas escolhas que ponderaria. Isto, hoje, porque, na sua golden age, Hollywood produziu comédias românticas que podem muito bem ser consideradas alguns dos melhores filmes de sempre.

É o caso deste "Roman Holiday - Férias em Roma". Esqueçam "Love Actually" ou "The Holiday"; por muito que as comédias românticas contemporâneas divirtam, "Roman Holiday" está numa liga completamente diferente, à qual pertence também o incontornável "The Philadelphia Story".

Realizado por William Wyler, este foi o filme-catapulta para Audrey Hepburn, que recebeu um Oscar pela sua interpretação de Ann, uma princesa jovem e cansada de todas as obrigações implicadas pela sua posição na sociedade. A história, resumidamente, segue as suas aventuras em Roma a partir da sua fuga nocturna, em que lhe é possível fazer coisas com que sempre sonhou, com a ajuda de Joe Bradley (Gregory Peck), um jornalista que vê na entrevista com ela a solução para os seus problemas financeiros e Irving Radovich (Eddie Albert), o companheiro fotógrafo dele.

O argumento é uma delícia. As personalidades das personagens, que os diálogos rápidos e perspicazes que estabelecem entre si vão revelando, e as situações originadas pelos seus actos formam um cocktail imperdível. A mestria com que Hepburn se transforma de uma cena para a seguinte, retratando ora a curiosidade juvenil e a vivacidade de Ann, ora a tristeza da castração a que é submetida, merece ser aplaudida. Gregory Peck confere charme a um Joe Bradley perto da ruína, mas mesmo assim fascinado pela companhia da princesa; já Eddie Albert encarna o terceiro elemento deste triângulo, criando com Peck um estado de conflito hilariante entre as duas personagens. Tudo isto acompanhado por uma realização impecável, que se adapta às diferentes fases do filme e respectivas exigências.


"Roman Holiday" é um clássico imperdível, que consegue fazer-nos rir com uma inteligência graciosa, e que nos comove sem se tornar piegas ou recorrer ao habitual melodrama. Durante grande parte da sua duração, trata-se de um filme alegre, contagiado pelo estado de espírito da sua própria protagonista, à medida que ela descobre a vida e, mais inesperadamente, o amor. A cena da mota é um ponto-chave da história, uma vez que personifica a liberdade à qual Ann sempre aspirou, e a imagem do casal em cima do veículo é memorável. Isto só para exemplificar.



Porém, é nas últimas cenas que o filme se torna verdadeiramente comovedor, à medida que o dia "de sonho" chega ao fim e os protagonistas voltam à realidade. A cena no carro, por exemplo, é das mais poderosas a que já assisti. Conseguindo despertar no espectador emoções distintas daquelas até aí proporcionadas, o final é a prova derradeira de que filmes como este são cada vez mais uma raridade. "Roman Holiday" brinda-nos com uma cena magnífica e que significa, para as duas personagens principais, a promessa incerta de algo improvável de acontecer, e tem a coragem de terminar numa nota realista e séria, que merece também ser louvada. Os últimos segundos do filme, o último plano, são, a meu ver, algo de fenomenal, e compõem um dos melhores finais que o Cinema já produziu.
Em suma: uma compra obrigatória.

domingo, janeiro 18, 2009

:Diarios de Motocicleta - Diários de Che Guevara

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Baseado nos registos deixados pelo próprio Che Guevara, o brasileiro Walter Salles traz-nos uma aventura inesquecível e magnífica de uma das figuras mais marcantes da História contemporânea que, ao atravessar metade da coluna latina da América do Sul acompanhado pelo melhor amigo, encontra o seu novo eu interior, conseguindo as bases suficientes para conceber os ideais políticos e revolucionários de que é eternamente conhecido.
Viajamos para Janeiro de 1952, onde dois amigos, Alberto, um bioquímico, e Ernesto, um estudante de Medicina, decidem percorrer oito mil quilómetros, num prazo limite de quatro meses (que não é, como imaginarão, cumprido), desde Buenos Aires até a península de Guajira, na Venezuela, na “Poderosa”, uma mota emblemática e velha. Depois de partirem da sua terra-natal, os dois iniciam uma jornada divertida, com altos e baixos despreocupados, cursando por entre paisagens naturais de uma beleza rara, retratada na perfeição com um cuidado estético na fotografia bem visível. Porém, após a visita da namorada de Ernesto, e depois de a mota morrer, o cenário torna-se mais cinzento, o ambiente adensa-se e a consciência de que não estão num mar de rosas social é tida em consideração, ao conhecerem uma série de grupos, culturas e problemas questionáveis, que farão do estudante uma nova pessoa, mais lutadora e íntegra. Chegamos a sentir o peso de tal descoberta com as inúmeras fotografias movimentadas a preto e branco que vão, de vez em quando, surgindo no ecrã: e a sequência final é um excelente modelo. Os seus monólogos meditativos, transpostos em voz off, são do melhor que o argumento pode dar (não pensem que todo o resto da história não vale a pena!): talvez por serem os escritos de Guevara, talvez por reflectirem a condição humana de forma genérica, ou talvez ambas. A verdade é que são de tal forma poderosos que nos sentimentos com vontade de largar tudo e partir para a estrada, deixando tudo para trás: e a fita mostra mesmo a razoabilidade desta decisão.
García Bernal está belíssimo como Ernesto “Che” Guevara, humanizando-o com uma feição real e honesta, sem demonstrar as ideias políticas e subversivas com exageros, escapando todo o argumento de um carácter político que muito provavelmente seguiria não fosse a existência de outros filmes que se concentraram nesse aspecto, dando-nos o actor uma interpretação verosímil e talentosa, das melhores de toda a sua carreira (note-se o ano do lançamento da película, o mesmo da estreia de “Má Educação”, de Pedro Almodóvar, onde nos apresenta um brilhante trabalho, merecedor de todos os prémios recebidos). Já Rodrigo de la Serna tem um desempenho competente, apesar de não equitativo.
O que de tão inspirador tem o “Diários”, para além de toda a audácia dos protagonistas que é transportada para uma obra de ficção (como acontece, mais ou menos, com “O Lado Selvagem”, de Sean Penn, mas de forma claramente menos solitária) é o facto de podermos ver, num panorama tão geral quanto específico, os resultados que pequenas mas poderosas acções vindas de dois corajosos amigos podem provocar em maiores grupos de pessoas onde, inicialmente, para todos eles, a fé afigurava-se como algo de já perdido. O filme é muito mais do que um road movie vulgar pela América do Sul; é um retrato histórico em tempos de pré-revolução que todos deveriam ver, e que reacende novas e universais perspectivas sobre o poder da amizade, do amor, da justiça e, principalmente, sobre o poder de acreditar que ainda é possível trazer um olhar de mudança para os desprotegidos e um grito de esperança para os mais silenciosos.
9/10

sábado, janeiro 17, 2009

A Casa dos Horrores de Rob Zombie

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Já com três longas-metragens no currículo (entre elas o remake do clássico de 1978, "Halloween"), Rob Zombie tem uma abordagem muito própria do género de terror, e os seus filmes valerão certamente a pena ser vistos, daqui a uns anos, por qualquer aficcionado pelo género.

"The House Of 1000 Corpses - A Casa dos 1000 Cadáveres"
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"Run, Rabbit, run!"
Um grupo de amigos viaja por altura do 31 de Outubro à procura da árvore onde Dr. Satan, conhecido serial-killer, terá sido enforcado. Pelo caminho, e depois de darem boleia a uma desconhecida, alguém dispara para um dos pneus do carro, impossibilitando-os de prosseguir viagem. A desconhecida logo os convida a ir a sua casa, onde o carro deles poderá ser reparado e onde eles podem descansar um pouco daquela noite chuvosa, numa demonstração de hospitalidade que soaria suspeita a qualquer um. É claro que ela está envolvida com os maus da fita, e é claro que a intenção dela não é ajudá-los, mas sim garantir que eles chegam ao covil da serpente.

Escrito e realizado por Rob Zombie, o filme revela um invulgar exercício de estilo: desde o tipo de imagem, que se parece com os videoclips da banda a que pertence, desde a banda sonora, até aos diálogos. É um filme cru, que, não estando isento de clichés, não se importa de os utilizar em seu cruel proveito: e quando pensamos que algo vai acontecer, nada melhor que vermos as voltas trocadas. Sem medo de arriscar, ao espectador é-lhe apresentada a descida dos jovens adultos (que, para não variar, melhor fariam se tivessem ficado em casa) a um inferno de tortura e sadismo, onde o gore existe, e em quantidades suficientes para deixar qualquer um indisposto.
Tem as suas cenas, e tem a particularidade de não assustar apenas pela banda sonora: um clima de tensão e terror é criado convenientemente, e há cenas que chegam a ser perturbadoras, como a show-stealer em que uma das personagens, a certa altura, protagoniza uma espécie de variante sangrenta d'Alice No País das Maravilhas. Há, no entanto, coisas que ficam para esclarecer: o motivo da família entrar nestas matanças desenfreadas, por exemplo. Mas nada disso importa: o mais importante, ao fim e ao cabo, é obtermos uma resposta para a questão: "Será que o Dr. Satan existe realmente?". E nós, ao menos, podemos obtê-la no conforto de sabermos que se trata de ficção: os protagonistas que, pelo caminho vão vendo os seus corpos despedaçados, tiveram menos sorte. Em jeito de nota, um facto curioso: filmado em 2000, "A Casa Dos Mil Cadáveres" só conseguiu ser distribuído em 2003.

"The Devil's Rejects - Os Renegados do Diabo"
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"RABBIT!"
Sequelas a filmes de terror não são algo incomum: veja-se o caso de "Saw", que já vai no quinto filme; "Friday The 13th", que teve uns 10; "Nightmare On Elm Street", que teve uns 7... contudo, uma sequela que leva o universo do primeiro filme a um patamar superior e acrescenta dimensões às personagens que conhecíamos, em vez de se limitar a reciclar a história do anterior apenas mudando algumas situações e, como é óbvio, o nome das personagens, é ago raro. Ainda para mais, se tivermos em conta que aqui seguimos a jornada de alguns dos vilões do primeiro filme, e não os bonzinhos que nos apresentaram anteriormente. Encontrámo-los em fuga, ao mesmo tempo que um xerife, querendo vingar a morte do irmão às mãos de Spaulding e companhia na prequela, empreende um interrogatório a Firefly, único membro da família a ser capturado.

O filme desenvolve, então, as relações de Baby, Otis e Spaulding, enquanto eles fazem mais umas vítimas e tentam escapar à justiça. Tornando-os (o mais possível, lá está) humanos, "Os Renegados Do Diabo" tem a vantagem invejável de conseguir que, ainda que não torçamos por eles, os compreendamos. E uma pergunta transcende todo o filme: quem é, afinal, o verdadeiro monstro aqui? Eles, que matam sem remorsos, ou o xerife Wydell, que não liga aos meios para concretizar a sua vingança pessoal, mesmo que isso signifique tornar-se semelhante (ou pior) àqueles que persegue?
A cena que melhor espelha esta dúvida é, sem dúvida, o jogo do rato e do gato protagonizado por Baby e Wydell entre o gado. Os papéis foram invertidos, os predadores tornaram-se agora as presas. Uma história que se afasta do "preto no branco" do anterior, para mergulhar o espectador num clima acinzentado, onde cada personagem tem razões válidas a fundamentar as suas acções. Uma esforço bem-conseguido por Rob Zombie, que, mais uma vez, não teve medo de arriscar, e teve até coragem para inovar.

"Halloween"
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"I like the mask because it hides my face."
Tinha grandes expectativas para este filme. Contudo, é fácil constatar que este é um remake de "Halloween", filme que celebrizou Jamie Lee-Curtis (e cujas sequelas, em que ela participou, devem tê-la feito vítima de um flagrante typecasting) totalmente dispensável e que constitui, até, um passo atrás na carreira de Zombie como realizador.
Ora, convém esclarecer que o filme é divido em duas partes: uma em que nos é explicado como Michael Myers apanhou o gosto pelo homicídio e outra, passada quinze anos mais tarde, em que Myers procura a irmã mais nova. Os motivos dessa procura são uma incógnita, mas algumas conclusões acerca disso podem ser deduzidas: sozinho no mundo, talvez queira reencontrar a única pessoa por quem ainda pode nutrir uma reminiscência de afecto. Contudo, tudo o que dissermos não passa de deduções, uma vez que, explicadas as origens do serial-killer, em quarenta minutos interessantes e elaborados, o filme passa então a ser um típico slasher, em que quem faz muito sexo tem morte certa, e em que a banalidade da forma como as mortes ocorrem é gritante. Àparte, claro, do confronto final entre ele e a irmã, Laurie, que, tendo sido adoptada em bebé por outra família, não se lembra dele. Aí, o filme consegue surpreender por alguns detalhes, e criar um bom clima de tensão.
Mas não passa disso. As ideias de Zombie eram boas: os diálogos, na segunda parte, são engraçados e bem-escritos, e a primeira parte é um estudo cuidado sobre o processo de criação do mítico homicida. Mas, no fim, poucas são as coisas que nos ficam na memória: talvez uma Scout Taylor-Compton a gritar o mais alto possível enquanto foge pela rua, ou a cena que precede a morte da irmã mais velha de Michael. Uma oportunidade desperdiçada, em que Zombie não conseguiu pegar no clássico e fazer uma versão sua, distinta. Soa a pouco... quem sabe na sequela (cuja existência é provável, a julgar pela cena final algo dúbia) ele consiga fazer algo semelhante a "Os Renegados do Diabo". E isso, sim, talvez valha a compra do DVD.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

:Veneno Cura

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Raquel Freire é a determinada realizadora portuense que, após ter marcado o prelúdio da sua filmografia com a curta-metragem “Rio Vermelho”, em 1999, e depois de ter causado controvérsia nacional com um invulgar “Rasganço”, de 2001, regressa em força com uma obra mais pessoal, artística, e susceptível a interpretações diversas, avaliando o rumo que é seguido pelas sete personagens que se vão entrecruzando entre si, partilhando um dos sentimentos mais elementares (mas, também, mais enigmáticos): o amor que, aqui, se apresenta como um veneno que tanto pode curar como aniquilar o ser humano mais desapaixonado.
“Fiz este filme porque acredito no amor”. A carta de intenções de Raquel para este filme era extensa, foi publicamente divulgada, e dava fundamentos mais do que suficientes para preparar um qualquer possível espectador para uma reflexão atípica de um tema mais do que discutido e expresso na sétima arte, e enchê-lo de expectativas para um filme revolucionário (e, também, muito depressivo, se bem se lembram aqueles que tiveram a oportunidade de ouvir a realizadora em “Pessoal e Transmissível”, na TSF). No entanto, não podendo garantir que estes objectivos foram com sucesso alcançados, já que a arte e o amor, juntos de forma incerta, são um produto altamente subjectivo, devo dizer que “Veneno Cura” é, principalmente, uma experiência sensorial que qualquer um, dependendo dos casos em particular, dará o valor devido, interpretando cada situação da forma como achar mais correcta. E, passando à trama da fita e ao argumento (elemento que é mais tido em consideração), as figuras que nos são apresentadas, por mais estranhas, repugnantes ou incomuns que nos possam inicialmente parecer, são um espelho não só autobiográfico mas de toda uma sociedade. E “espelho” aqui atribuiu-se não na verdadeira acepção do termo mas as personagens reflectem, depois de concluirmos numa breve ponderação, a verdadeira humanidade que se encontra, neste caso em particular, despojada de quaisquer preconceitos ou entraves a uma felicidade. Felicito, pois, o cuidado meticuloso que é posto em conta com a caracterização psicológica de todo o enredo, mostrando-nos, numa melodia consternadamente silenciosa, as cogitações sofridas daquele trágico grupo de pessoas, solto de qualquer sentido de esperança ou de ambições (há um monólogo que é feito e que demonstra bem essa angústia), vendo luz na dor, nas lágrimas e na morte. No entanto, o mais surpreendente que é visível nestas narrativas que parecem desconexas, é que tudo parece culminar numa sequência irónica e quase risível sobre a vida: como se o destino os espancasse e risse da cara de felicidade deles, no momento final. Exemplo edificativo do que acabo de referir é a personagem de Rosa, a quem nos podemos mais identificar, apesar de tudo: é com ela que começamos uma abertura muita crua mas excelente e um final poético na cidade sombria do Porto. E é, também, devo admiti-lo, a única, talvez, que não sofre de impulsos constantes sexuais, como todos os outros parecem padecer (já que o sexo para todos os outros e para a própria realizadora enquanto visionária fazem parte de uma realidade inalterável e necessária), e que não ultrapassa os limites invisíveis e não falados de um politicamente correcto comportamento em sociedade. No entanto, mesmo assim, o seu caminho depois de ter perdido, fatalmente, um filho, é extraordinariamente ingrato: a meu ver, e penso que a o verbo se adequa, foi violada por um advogado obcecado com uma personalidade abominável (muitos discordariam) e deixou-se levar por ele, já que se afigurava como o único ser capaz de salvá-la de um destino ainda mais negro (falo do suicídio). E juntos procriaram, e criaram uma vida nova, uma felicidade idealizada e extremamente artificial: não será a realidade de muita gente, que se ilude diariamente? Garanto-vos que nunca um final feliz me deixou tão revoltado, mas depois, se chegarem a ver, opinem. Quanto às outras situações relativas ao argumento, saliento a do fotógrafo que me soa muito familiar (aliás, com algumas personagens reverão certos momentos da vossa vida, inevitavelmente) e da simbólica mulher do “Imperatriz”, que conclui a vida com um desgosto amoroso diluído num cru banho de sangue. Para terminar neste aspecto, verão, quem segue os trabalhos de Freire, um género de “versão melhorada” do “Rio Vermelho”, o que me agradou bastante, já que a curta-metragem não me tocou tanto quanto devia ter atingido.
Voltando-me para aspectos mais técnicos, devo dizer que a fotografia e o som, relacionando-a com projectos anteriores, sofreram uma evolução tremenda, o que é um aspecto deveras positivo, já que deixou transparecer a cidade onde vivo em quadros animados belíssimos. A banda sonora esteve muito bem: a instrumental criou um ambiente de tensão bem propício e as sequências de música com letra foram das minhas preferidas (ópera incluída). A fluidez dos movimentos de câmara (incluindo momentos de óptica subjectiva que me agradaram) resultou, mostrando um progresso natural, uma visão mais adulta e aperfeiçoada de uma autora com perspectivas inovadoras do mundo actual.
Por fim, e como não podia deixar de ser, agradeço imenso a quem possibilitou a minha ida à antestreia de “Veneno Cura”, a minha professora de Filosofia, e a própria Raquel Freire, que me proporcionou momentos bastante aprazíveis e, claro, uma obra com uma mensagem que se pretende universal, digna de ser discutida. Então o veneno cura… porquê?
8/10

terça-feira, janeiro 13, 2009

Once - No mesmo tom

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Falar de "Once" lembra-me do teste em que me era pedida uma análise da obra de Caeiro, quando o próprio Fernando Pessoa escreveu que sobre os poemas desse seu heterónimo "não se pode comentar, porque se não pode pensar, o que é directo, como o céu e a terra; pode tão-somente ver-se e sentir-se". Ambos são formas de Arte que não necessitam de um debate minucioso ou uma de meditação aprofundada para nos dizerem alguma coisa. Mas, tal como a simplicidade de versos como "acho que só para ouvir passar/o vento vale a pena ter nascido" não deixava de ser bela, também "Once - No Mesmo Tom" consegue ser emocionalmente poderoso, embora partindo de uma premissa já demasiadamente familiar a todos nós: o boy meets girl.

Por vezes pergunto-me o que procuro, afinal, do Cinema. A resposta imediata, a que de facto me ocorre neste momento, seria: uma boa história, devidamente contada. Existem filmes erigidos sobre argumentos mirabolantes, com uma realização magistral, ou uma fotografia onde todos os pormenores se conciliam para compor planos que se assemelham a verdadeiros quadros. De facto, alguns dos meus filmes favoritos correspondem a esta descrição (bem, quanto ao argumento nem tanto - não é necessário ser rebuscado para ser interessante, e sou dos que defendem a importante, e por vezes esquecida, diferença entre o complicado e o complexo). Em "Once", tudo isso é secundário. Não é de admirar, já que o orçamento, segundo consta, não ultrapassou os 100 mil euros. O que conta realmente são as personagens principais.

Ele repara aspiradores na loja do pai e toca na rua acompanhado pela viola, na esperança de ganhar algum dinheiro; ela vende flores e pratica a paixão pelo piano à hora do almoço, todos os dias, numa loja de música. Ela vê-o todos os dias, e certa noite congratula-o pelo seu desempenho, oferecendo-lhe até dez cêntimos - e assim se inicia um vínculo cada vez mais forte que passa a ligar os dois.

Porém, o relacionamento deles jamais surge como a solução dos seus problemas (sentimentais ou monetários). E ainda bem. Este é um filme com uma surpreendente noção da realidade, e isso é visível por diversas vezes. As suas personagens têm uma vida como qualquer adulto, que implica responsabilidades e deveres - algo que, muitas vezes, interfere na relação que os dois vão construindo na semana em que se conhecem e começam a compor músicas. Mas desenganem-se aqueles que leram a sinopse, Ele e Ela não cantam sobre essa relação, mas sobre os assuntos amorosos mal resolvidos de cada um.

E assim os acompanhamos, à medida que se conhecem e relatam as vidas deles através das canções. Ou não fosse "Once" a celebração dos sentimentos através da música. Desde os primeiros instantes, mais tensos, ao julgamento errado que ele faz acerca das intenções dela, pouco depois, até à amizade. A história dificilmente se poderia considerar romântica; o que presenciamos é mais uma relação platónica, predicada à máxima de que o verdadeiro amor é aquele nunca consumado.

O interesse principal recai, então, na música. E é nesse departamento que o filme atinge o seu expoente máximo. A estrela será, sem dúvida, "Falling Slowly", que dispensa apresentações e que ganhou o Oscar de melhor música original, mas há também a enérgica "Fallen From The Sky", "Say It To Me Now", ou uma das mais enternecedoras, "Lies". E todas estas foram escritas pelos músicos que interpretam as personagens principais. Glen Hansard eMarkéta Irglová são músicos, e não actores. Mas a decisão do realizador em preferir pessoas que saibam realmente cantar ao invés de verdadeiros actores é acertada, já que o par é sem dúvida talentoso, e possui a química necessária para tornar a relação deles natural.

As personagens de "Once" estão frequentemente divididas entre o que são, e o que gostariam de ser. É uma relação cujos intervenientes gostavam que evoluísse, embora conscientes de que tal seria impossível. No final, existe a possibilidade de um futuro feliz para os infortúnios amorosos do passado, através da ajuda que cada um providenciou ao outro no presente. É uma conclusão que, não agradando decerto aos mais habituados ao genérico happy ending, consegue ser honesta, como até ali tudo o que lhe precedeu havia sido. "Once" tem defeitos, sim (um deles não ligado ao filme em si, mas ao subtítulo português, mais adequado a uma comédia romântica do género "Music and Lyrics"), mas é, no todo, uma lembrança do que o bom Cinema devia ser, sempre: uma boa história, devidamente contada.

domingo, janeiro 11, 2009

:Changeling - A Troca

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Escusado será talvez dizer que muita era a expectativa para este novo filme de Eastwood: recebido calorosamente em Cannes e aclamado pela crítica, “Changeling”, traduzido para Portugal como “A Troca”, foi visto no dia depois da estreia portuguesa com amigas minhas (e que muitos lembrarão pela neve que na sexta caiu).
Nos finais da década 20, Los Angeles é capitaneada por, ainda que não combatida ou desvendada, uma Polícia corrupta e deteriorada, compelida em manifestar-se perante a sociedade com a imagem falsificada de que é um conjunto de, a meu ver, semideuses capazes de solucionar pronta e eficazmente os problemas que se lhes vão emergindo. Quando Walter Collins desaparece, a sua mãe diligente Christine reporta a ausência às autoridades que prometem ajudá-la. Quando um rapaz é encontrado, passado uma época de buscas infrutíferas, comunica-se imediatamente a comunicação social para registar o suposto término de um caso que tem exigido um certo mediatismo pela imprensa (lembramo-nos um pouco do caso de Maddie McCann, não?). O que acontece, contudo, é que a criança não é, verdadeiramente, o filho de Christine. Quando se apercebe de tal (que é logo que vê o rapaz), recusa-se a aceitá-lo mas os agentes insistem em pô-la “à experiência”, roçando uma situação que, aos olhos de qualquer um dotado de razão, é, francamente, ridícula e quase improvável. Poderia muito bem falhar e pecar a partir desse momento (o que desviaria uma série de situações de índole altamente dramática), mas, como bem saberão, em certa medida, este trabalho de ficção baseou-se muito numa história verídica, o que faz com que o filme passe a ser uma certa denúncia e uma advertência a todos. Durante a película, J. Michael Straczynski conta-nos uma autêntica odisseia emocionante e delirante, passando pelos horrores de um instituição que pretende, na carta de intenções, curar todos aqueles que sofrem de problemas mentais (talvez piorem lá), por um sombrio e impensável infanticídio, e por um comovedor e esperançoso caso judicial, que vai deixar qualquer um de olhos bem abertos.
Angelina Jolie entrega-se ao papel como ninguém provavelmente o faria, deixando uma marca consistente, perfeita e exemplar no ramo da representação, soltando um pouco para trás a sua imagem estereotipada de “sex symbol” que surge apenas nos filmes que realçam o seu (deslumbrante) físico. No entanto, como personagem, em termos corpóreos e de caracterização, Christine Collins resulta bastante bem, afigurando-se como uma personagem poderosa, uma pessoa com muita classe, lutadora, convicta e resignada, transpondo de forma perfeita a dor insustentável de uma mãe que acaba de perder o filho (reinventando um papel familiar no cinema; quem não se lembra dos constantes e sofredores gritos, “I want my son back”?). Outras interpretações brilham na película: falo, obviamente, de John Malkovich, que veste o papel do reverendo Gustav Briegleb, e que surge simplesmente com um verdadeiro salvador e anjo da guarda (difícil será não simpatizar, pelo menos, com a figura), e Jeffrey Donovan, que, como contraponto, representa o abominável e lerdo Capitão J.J. Jones: ambos merecedores de vários prémios.
Surpreendentemente, como já o tinha feito com “Mystic River” e outros projectos, o realizador e produtor aparece também como o compositor da banda-sonora original, transportando para o filme uma balada harmoniosa e inesquecível entre o piano, o violino e, por vezes, a guitarra para aprofundar momentos de maior tensão ou, em contrapartida, de felicidade (a pouca que é vista no filme). Quem se lembrar da sequência final lembrar-se-á da sensação que ficou a ver aquele autêntico plano geral esplêndido aliado ao tema principal enternecedor.
Como espectadores, entramos por completo na história que se vai desenrolando e, revoltantemente, vemo-nos como a inaudível e impotente assistência daquela sequência de acontecimentos aliciantes e, em certa medida, repulsivos, o que já é por si um grande feito: captar a atenção de quem vê e envolvê-lo na trama foi sempre um dos grandes objectivos da indústria hollywoodesca.
Se é digno dos globos de ouro a que foi nomeado? Penso que sim: mas também a minha opinião encontra-se um pouco limitada pelo facto de não ter visto as outras fitas que foram apontadas. No entanto, “Changeling” é, sem dúvida alguma, um daqueles filmes que não me importava de ver mais uma vez nas salas de cinema, já que é uma obra-prima extremamente bem escrita, realizada e fotografada; uma história inspiradora, que entretém, e que é, sobretudo, memorável.
9/10

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Marie Antoinette

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Para as nossas leitoras: imaginem-se a casar aos 14 anos com um homem que desconhecem e de outra nacionalidade, herdeiro do trono, com o único propósito de fortalecer as relações entre o vosso país e o dele, sendo depois forçadas a viver no país do dito noivo, e a gerar um herdeiro o mais rapidamente possível. Acrescente-se a isso a delicada situação de arcarem com as culpas de um casamento não consumado até cerca de sete anos depois da cerimónia, por desinteresse do parceiro, além de terem de tomar decisões para apaziguar os confrontos bélicos que envolvem o vosso país, mas que vão contra o do noivo. Tudo isto passado nos finais do séc. XVIII, rodeadas do luxo e das intrigas de Versalhes, num ambiente pré-Revolução Francesa. É esta a história que Sofia Coppola se propõe a contar em "Marie Antoinette", com Kirsten Dunst a encarnar a visão da realizadora de uma das figuras históricas mais populares, e que, por isso mesmo, partilha semelhanças com Charlotte, a protagonista do seu filme anterior, "Lost In Translation".

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Rohtenburg – Amor Sinistro

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A história real aconteceu em Março de 2001, quando Armin Meiwes e Bernd Brandes, sua vítima (cúmplice?) se dirigiram para a casa do primeiro, com o objectivo de celebrarem um sádico ritual. Tinham-se conhecido na Internet, quando Meiwes colocou um anúncio a requisitar alguém disposto a servir de "menu" para ele realizar a fantasia de devorar um ser humano. Este caso insólito, que chocou o mundo pelo envolvimento de canibalismo (tema capaz de mexer com qualquer um), ganha em "Rohtenburg" honras de filme.

terça-feira, janeiro 06, 2009

:Requiem for a Dream - A Vida não é um Sonho

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Numa altura em que a televisão tem uma importância quase, diria eu, terminante na comunicação social e na sociedade ocidental na generalidade, e numa época em que outros tipos de drogas (as mais próximas do conceito), consideradas, em termos legais, ilícitas, também se encontram em voga, torna-se imperativo ver este autêntico “Requiem”, desta vez não musical, mas cinematográfico, e crucial também se torna, claro, no meu caso em particular, escrever uma pequena opinião sobre filme.
Voltando-me, antes de mais, para a sinopse, deparamo-nos com três (ou quatro, dependendo da perspectiva, que pode ser mais abrangente) histórias entrosadas, situadas numa Brooklyn contemporânea: a de uma mãe dependente do seu programa televisivo preferido, o de um concurso semelhante àqueles que podemos ver nas tardes dos nossos canais generalistas, interpretada magnificamente por Ellen Burstyn (nomeada, com este filme, para um Óscar) e que, ao se ver perante uma oportunidade de aparecer no programa, inicia um desregrado vício por supostos medicamentos que diminuem o seu peso; a do seu filho (Jared Leto) e amigo que iniciam um perigoso e descuidado processo de tráfico de drogas (e o vício das mesmas, por conseguinte, sob o triste pretexto de experimentar para garantir a “qualidade”), e a da sua namorada, aspirante a estilista, representada por Jennifer Connely, presenteando-nos com uma actuação de prender a respiração (possivelmente, a meu ver, a melhor da sua carreira). É com isto que tudo se coaduna, improvável mas brilhantemente, dirigindo-nos a uns trinta minutos finais do mais dramático que alguma vez vi: aliás, torna-se, a certo momento, interessante reflectir sobre tantos momentos concentrados trágicos e emocionalmente pesados, como uma bomba a detonar lentamente. Será que a vida, para além de não ser, como o título o diz, um sonho, está delineada para atirar-nos com uma pedra de desditas a certa altura da nossa existência? O filme é, identicamente, um bom motivo para reflectir sobre os nossos próprios pensamentos sombrios e vícios (realço um, que parece ser a dependência invisível e incorpórea do novo século: o computador e, como consequência, a Internet) e para termos, mais uma vez, uma visão (terrivelmente) negativa sobre as drogas.
De qualquer das formas, é sempre bom, a meu ver, apreciar filmes que explorem a psique do homem, a obscuridade das suas acções e as respectivas motivações e consequências, mas nunca nenhuma história me tinha feito sentir tão culpado e baixo como este. De outro modo, as sequências não teriam a intensidade que lhes é concebida se não fosse também papel peremptório que teve a banda sonora. E que dizer dela? Clint Mansell é um génio, e comprova-o novamente, mais tarde, com “The Fountain” (“Death is the road to Awe”) não admira mesmo nada que quisessem já utilizar a “Lux Aeterna” em vários trailers e anúncios televisivos.
Tão arrojada e inovadora como a trama, só apenas, muito provavelmente, o próprio Aronofsky (já agora, alguém notou influências de Kubrick neste projecto?), que demonstra, mais uma vez, a sua versatilidade e talento (e futuramente, espero que “The Wrestler” esteja ao nível dos dois últimos projectos). Os vários planos, meticulosamente planeados ao seguir o argumento sublime, demonstram bem uma originalidade e ousadia característicos do realizador. No entanto, e não avultando isto como um ponto negativo, é uma fita muitíssimo deprimente e que deixa, infelizmente, um grande sentido derrotista à vida na sua generalidade, sem qualquer tipo de mensagem esperançosa que possa, de alguma forma, confortar o espectador. E, bem vos posso garantir, é um autêntico murro no estômago, a não querer repetir muitas vezes. Não há melhor forma de descrever “A Vida não é um Sonho”, um filme que não é só um trabalho artístico, mas sim uma verdadeira e quase perfeita análise da humanidade actual, demonstrando a sociedade em toda a sua deterioração, imperfeição e hediondez. Não é para todos, mas para quem não viu, aqui fica o desafio de ver "Requiem". Depois opinem!
10/10

segunda-feira, janeiro 05, 2009

"Anna Karenina", Leo Tolstoi

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Há simultaneamente algo de comovedor e de horrível na figura de Anna Karenina.

Aprisionada a um casamento com Alexei Karenine, homem mundano e valorizador, acima de tudo, das aparências e do estatuto social, surge-nos inicialmente descrita como a mais bela das mulheres, detentora de um carácter íntegro e de uma visão amadurecida sobre o meio em que vive: adulta e enriquecida pela experiência da maternidade, Anna desde logo se mostra dificilmente cativada pelas diversões características da esfera da sociedade a que pertence - um exemplo ilustrador é o momento em que diz aborrecer-se em bailes em conversa com a jovem Kitty, recentemente apresentada à sociedade e para quem esses eventos sociais significam o atractivo máximo da sua existência.

Considerando o primeiro aspecto sobre ela assinalado, não é difícil compreender os motivos que levam o boémio Alexei Vronski, militar em início de carreira, a interessar-se por ela, e a relação de ambos parece envolta num véu de inevitabilidade, desde o primeiro olhar trocado entre si na estação aos encontros que entretanto se lhe vão sucedendo. Aos olhos de Vronski, aquilo que de início poderia ser apenas mais uma conquista, aliás encorajada pela sociedade - onde a corte a uma mulher casada, e possível envolvimento, era vista como um desafio aos pretendentes e um afagar da auto-estima dos maridos (que, quando não desafiavam os rivais para um duelo, fingiam nada saber) -, torna-se progressivamente o motivo da existência dos dois: algo que ele salienta quando diz a Anna estar nas suas mãos "o decidir se viremos a ser ou os mais felizes, ou os mais infelizes dos seres humanos".

Kitty (ou Catarina) Tcherbatski, ingenuamente acreditando no amor que julgava ser-lhe dedicado por Vronski, revela-se, juntamente com Constantino Levine, uma das personagens mais tocantes de toda a obra. Travando amizade com Varienka enquanto se reabilita num retiro termal no estrangeiro, Kitty representa, através das suas vivências, a necessidade de um modelo, que nos é própria na juventude. Anna ocupa esse lugar logo após o conhecimento das duas, porém temporariamente; Varienka sucede-lhe, mas também apenas por um curto espaço de tempo. O crescimento de Kitty e a descoberta do seu verdadeiro "eu", processo comum a todos nós, é interessante devido à honestidade com que, finalmente, se consegue aceitar a si mesma, numa confissão enternecedora em que é visível a preferência do autor pela transparência de espírito e sentimentos genuínos, ao invés da prática de actos cujo objectivo é simplesmente a salvação da alma, numa religiosidade devota encarnada em Varienka, mulher inteiramente dedicada ao altruísmo.

É na personagem de Dolly (ou Daria Alexandrovna) que a história adopta a sua faceta mais determinista. Caracterizada pelo marido como uma sábia no que toca a relações, revela-se quase uma profeta relativamente ao futuro relacionamento de Kitty, sua irmã, e Levine, um pretendente que ela rejeita nos momentos iniciais da trama, por acreditar que ela acabará, "seja de que maneira for", sua mulher.

Levine, por sua vez, verbaliza a posição do autor relativamente à sociedade, numa valorização dos agricultores e das pessoas do povo, enfim, dos desfavorecidos, genuínos por contraposição aos membros das elites, supérfluos e imorais. A busca interior pelo significado da sua existência (que o próprio Tolstoi experimentou, e com uma conclusão idêntica) leva Levine a encontrar na religião o fundamento da sua criação, num percurso tão comovente como o de Kitty.

A Anna está reservada a jornada mais trágica de todas - sacrificando tudo, inclusivamente o filho e a honra, pela promessa de uma felicidade que nunca chega verdadeiramente a experimentar, acaba fatalmente asfixiada pelas teias de que julgara, a certa altura, libertar-se: a sociedade exclui-a, repugnada pelas suas acções, e o marido recusa-se a conceder-lhe o divórcio, impedindo-a de viver uma relação sem vergonha com Vronski.

Como disse, há algo de comovedor em Anna, e que se prende principalmente com as suas observações acerca do mundo que a rodeia (como no momento em que afirma pensar "muitas vezes que os homens não compreendem o que é nobre, embora passem a vida a falar de nobreza") com a sua procura pela felicidade. E algo de horrível: Anna não abandona apenas o marido, mas também o filho, cujo amor, constata, por fim, essencial à sua existência. Condicionada pela posição da mulher na sociedade do séc. XIX, dificilmente encontraria um desfecho feliz para a sua situação - e não será muito difícil compreender a derradeira decisão de uma mulher sem honra, obrigada a viver longe do filho e presa a um homem de cujo amor duvida de forma constante, e por quem tudo perde.

P.S.: Não escrevi nenhuma introdução para o texto porque achei que, não sendo exactamente uma opinião mas antes um olhar sobre as personagens, seria desnecessário falar antes, ou depois, do livro, da escrita, ou do que achei disso tudo. Aliás, melhor dito, a frase inicial é a introdução, mas achei que ficava algo pretensioso pô-la antes do clique, por isso optei por deixar só a imagem.

domingo, janeiro 04, 2009

:Se, Jie - Sedução, Conspiração

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Nem toda a beleza apresentada, por mais estilizada que possa parecer, tem como efeito a idealização da realidade, e o mais recente filme de Ang Lee prova, mais uma vez, que qualquer panorama paisagístico, qualquer gesto humano, por mais simples ou sórdido que a início possa parecer, pode resultar na perfeição emocional e estética de uma situação, levada, neste caso, ao grande ecrã, deleitando, certamente, como feliz consequência, o espectador mais atento e exigente.
Não sabia o que esperar quando comecei a ver a película, mas desde o primeiro ao último momento sentimos uma abismal atenção dada a todos os detalhes, desde o cenário na sua generalidade, ao guarda-roupa e caracterização das personagens, factores que, devo admitir, não são frequentemente meritórios da minha atenção mas que, com “Se, Jie”, se distinguiram de forma primorosa, concordando com uma fotografia e banda sonora sublimes. Não cuidem os leitores que todos os adjectivos estão a ser utilizados de forma irreflectida, pois é isso que, com a visualização desta autêntica obra-prima, vão ver.
Como se não bastasse a mestria de todos os aspectos técnicos, o argumento e a história são mais do que dignos de um destaque. Tomemos como ponto de partida a sinopse, que nos remete para uma China sombria, ocupada pelas impertinentes forças políticas e guardais japonesas, no contexto da segunda Grande Guerra. Wong Chia Chi é a nossa protagonista inicialmente imaculada, uma universitária que, aliada ao seu grupo de amigos radicalistas que protestam contra o regime imposto, vê a sua vida dar uma volta de cento e oitenta graus quando decidem infiltrar-se numa sociedade secreta japonesa e aniquilar o cabecilha policial Mr. Yee, responsável por uma tensão social que nas ruas chinesas se foi criando, teatralizando, com falsas identidades, uma família com um enorme poderio económico. Entre muitos erros e vitórias que se criam entre o grupo, o limite é chegado na recta final, em Xangai, com um final admirável (e também, para alguns, aberto), que terão de ver.
Assombrosas são, também, as cenas explícitas que retratam as relações sexuais entre Wong Chia Chi e Mr. Yee, mostrando uma sensibilidade e concupiscência inegáveis e que representam, em termos gerais, aquilo que “Sedução, Conspiração” é, na sua totalidade.
Estamos perante um thriller arrojado e mergulhado numa atmosfera neo-noir de prender a respiração, e de quase 3 horas passadas a voar; um romance negro, silencioso e improvável entre o lobo e a ovelha; uma trágica análise de todas as personagens, desmesuradamente apartadas da já bem conhecida distribuição bivalente feita para distinguir os heróis dos vilões; um retrato documental e preciso de um país acorrentado e sem esperança. Estamos, portanto, e sobretudo, perante uma preciosa obra-prima de visualização necessária e obrigatória, injustamente ignorada na sua estreia, mas que, e gosto de o imaginar assim, daqui a alguns anos, será um trabalho mais do que discutido e apreciado.
9/10

sábado, janeiro 03, 2009

:Feliz ano novo, bons filmes e boas leituras!

Vários foram os filmes, livros, programas televisivos e músicas que experimentaram reproduzir, de alguma forma, a passagem simbólica de um ano para outro ou, dito de outra forma, o despertar para um novo início que, ao longo dos séculos, se vai repetindo repleto de misticismo e expectativa para um futuro melhor. Pois, com a ideia bem assente de renovação, o Pipocas e Outras Tretas volta a abrir as portas para todos, desta vez com uma nova atmosfera, comemorando aquilo que esperamos ser um espaço mais organizado, actualizado e atractivo para todos os leitores. Assim, abarcamos as publicações para mais temas, relacionados, maioritariamente, com as artes (especialmente o cinema, a literatura e a música), libertando-nos de um modelo mais limitado e restritivo no que se refere ao conteúdo e à estrutura dos posts, que passa, a partir de hoje, a ser algo mais pessoal. Acrescente-se ainda a novidade das crónicas mensais feitas pelos seis membros do blog (Douglas Lobo, Flávio Gonçalves, Isabel Dias, Luís Peres, Sandra Esteves e Rúben Gonçalves), onde, como já foi referido, no caso de Luís Peres, se falará mais especialmente sobre música erudita. Quanto a aspectos técnicos, o primeiro, evidentemente, é a mudança de template e de banner e a ligeira modificação que a barra lateral sofreu. Finalmente, no que à zona livre do “Pipocas” diz respeito, esta continua aberta e à espera da participação dos nossos leitores! Esperamos que todas estas mudanças sejam do vosso agrado e que, com este reinício, 2009 seja um ano repleto de agradáveis surpresas e pipocas bem saboreadas!
Ok, a razão por que não pude escrever nada nos últimos devem-se, não à preguiça, mas à falta de tempo, já que dediquei a minha escrita ao Pipocas e Outras Tretas, cujo post de reinício podem ler acima, e que aconselho-vos desde já, se não for pedir muito, que vão lá de vez em quando porque vai ser nesse blog que eu e outros amigos meus, cinéfilos ou livrólicos, vamos publicar as críticas. Agora com o cartão da ZON posso ir ver filmes gratuitos, invejem-me :P De qualquer das formas, feliz 2009, que seja um ano repleto de surpresas e bons filmes :)
P.S.: A imagem é do fantástico filme "Sedução, Conspiração" de Ang Lee.

sexta-feira, janeiro 02, 2009

:"A Viagem do Elefante", José Saramago

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Estamos em meados do século XVI, no quarto onde D. João, terceiro de Portugal, tomou a decisão de oferecer a seu primo, o arquiduque austríaco Maximiliano, um elefante indiano, por razões implicitamente políticas. E é precisamente a partir deste acontecimento que a uma fantástica odisseia se dá início.
A premissa é, no entanto, a desculpa para dar começo, como Saramago já bem nos habituou, a uma profunda análise da humanidade, estudando e expondo mordazmente todas as suas ideias pré-concebidas, contradições e fraquezas, elevando dois heróis distintos que dependem, estreitamente, um do outro: um elefante chamado Salomão (depois “Solimão”) sem falsos moralismos que se vê, de um momento para o outro, como o centro de atenções, podendo ver, de perto, uma sociedade madrasta e, ao mesmo tempo, risível, e o seu cornaca (tratador) chamado Subhro (depois “Fritz”), que dele o cuida e ama, sendo, provavelmente, a humanização do outro animal, já que tantas características partilham. Subhro é, como o autor o descreve na recta final, a “personagem decisiva em todos os momentos do relato, dos dramáticos e dos cómicos, arriscando o próprio ridículo sempre que foi achado conveniente para o bom tempero da narrativa, ou apenas tacticamente aconselhável, disfarçando as humilhações sem levantar a voz, sem alterar a expressão da cara, cuidadoso em não deixar transparecer que, se não fosse por ele, não haveria ninguém para levar o elefante a Viena”.
É, contudo, a viagem de Salomão desde a capital portuguesa à austríaca (passando também por Castelo Novo, Valladolid, Génova, Tentro, Bolzano e Bressanone / Brixen), que podemos ver o claro impacto que um animal enorme, supostamente irracional (Saramago até brinca com o facto de que o elefante tem espaço suficiente para pensar), provoca nos seres humanos. Como melhor exemplo disto temos o comandante português que dirigiu a viagem de Lisboa a Valladolid com todos os outros homens que ajudaram no transporte da comida e afins para o elefante, e que sofreu uma feliz modificação no seu comportamento: antes dogmático e impositivo, passou a considerar, onde inicialmente acharíamos altamente incerto, Subhro como amigo, pela convivência que foram tendo os dois (aliás, os diálogos entre eles são notáveis).

Convém realçar também a grande crítica religiosa feita, mais uma vez, em diversas ocasiões, mas que se salienta em duas ocorrências cómicas: quando o elefante é “abençoado” por um padre e, irritado, o deita para o chão com a pata, e quando um outro sacerdote, italiano, ordena Subhro, agora Fritz, admitindo verbalmente a hipocrisia eclesiástica, que faça com que o elefante se ajoelhe à porta da igreja, teatralizando aquilo que é, aparentemente, um milagre, de forma a conseguir mais “adeptos” cristãos (já que, relembremo-nos, situamo-nos na época do protestantismo luterano).

O que prima, conjuntamente, na obra, é a já conhecida interacção leitor-autor, evidenciada com a utilização frequente da primeira pessoa do plural na narração, e tornou-se interessante, e até, a certas alturas, hilariante, seguir a acção com o próprio Saramago. Como dois exemplos n’A Viagem do Elefante temos, diria eu, a parte onde o autor decide, e anuncia-o na narração, converter os processos de medida utilizados no século XVI (como a légua) para os da actualidade (o quilómetro, por exemplo), para ser mais inteligível ao leitor (e compara esta modificação histórica a um filme legendado, dado que, como sabemos, e parafraseando Saramago, as legendas suprem a ignorância ou um insuficiente conhecimento da língua falado pelos actores. É também de salientar que esta ligeira mutação nos termos utilizados na narração ocorre porque, supostamente, o leitor, caracterizado por ser “curioso e amante do saber” (serão todos?), pergunta ao narrador como se entendiam os portugueses, perante tantos processos de medida, respondendo Saramago, nesse diálogo meramente fantasioso que tem connosco, com uma pergunta, “como nos entenderemos nós”, dando de seguida a solução que já referi acima. O segundo outro grande exemplo, e também mais cómico, é quando Saramago pede ao leitor, na altura em que Subhro, ou Fritz, o cornaca, que a meio da noite tem uma vontade imensa de defecar e fá-lo apressado num agregado de árvores, “desviemos a vista enquanto ele se livra da roupa, que, milagrosamente, ainda não sujou, e esperemos que levante a cabeça para ver o que nós já vimos, aquela aldeia banhada pelo maravilhoso luar de agosto (…)”.

“Quando o cérebro divaga, quando nos arrebata nas asas do devaneio, nem damos pelas distâncias percorridas, sobretudo quando os pés que nos levam não são os nossos”. E é precisamente desta forma que nos sentimos a ler este livro. A história culmina, pois, num final trágico que não vos arruinarei mas que me pareceu um pouco abrupto e acelerado, com um episódio rápido de salvamento que ilustra, a meu ver, apesar da simplicidade, as circunstâncias difíceis com que se deparou José Saramago durante a escrita e, depois, a magnífica “ressurreição” que teve por uma luta entre a vida e a morte. Aliás, a retrospectiva de uma vida é analisada, por breves momentos, na passagem que afirma que “o passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas” ou, até, quando escreve que “a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos”. No entanto, o livro serve para mostrar a importância, não propriamente de ter um elefante, mas de ter alguém disposto a ajudar-nos em situações limite, alguém próximo, um amigo para a vida inteira.

Salomão torna-se, pois, o pretexto para viajarmos a um universo que nos é bem conhecido, o dos animais mais (ou talvez menos) civilizados e coerentes, com uma história que nos presenteia de forma brilhante com as acções e cogitações (umas mais estrambóticas do que outras) que a mente humana pode formar, ao lado de outros seres, racionais ou não, explorando toda a sua vertente moral. O elefante torna-se, por outras palavras, nada mais, nada menos, do que a plateia incensurável de uma peça de teatro humana interminável, burlesca e, por vezes, quando ao elenco convém, congruente, compassiva e sensata.

"Siddhartha", Hermann Hesse

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Este livro conta-nos a história da busca interior, da procura da verdade e da perfeição. Siddhartha, a personagem que acompanhamos, era amado por todos (em especial por Govinda, o seu grande amigo que o acompanha nesta jornada) e trazia a todos felicidade. Mas ele não era feliz.

Siddhartha questionava-se a toda a hora, procurava o verdadeiro sentido da vida e, para isso, atravessa fases muito distintas da sua vida: nasce e vive como brâmene em casa do pai, renuncia todos os bens materiais e junta-se aos samanas, depois entrega-se ao prazer da carne e à riqueza e, por fim, olha a morte ou o amor incondicional como uma fuga a tudo isto, a todas estas coisas em que não encontrou a verdade. Ainda assim, aprendeu com todas estas experiências.

Uma parte muito interessante do livro é quando o nosso quotidiano é relatado. A maioria das pessoas encara a riqueza com o real sentido da vida e afasta-se da meditação. Outros, ricos, vivem uma monotonia e vazio interior tal que se destroem a pouco e pouco. Alguns acham que todos vivemos para o amor e entregam toda a sua vida à pessoa amada. Mas muitos encontram no suicídio uma solução para uma vida que julgam não ter qualquer sentido. Siddhartha passou por todas estas fases e aprendeu muito com elas. E, para além disso, mostra-nos como uma das coisas mais importantes é saber esperar e jejuar - as únicas coisas que possui durante esta sua viagem.

No fim podemos concluir que não é fácil procurar a sabedoria dentro de nós ou apenas a escutar o rio, mas é possível e é a forma mais enriquecedora de obter sabedoria e atingir a verdade.

Com uma escrita belíssima, este livro tem poucas descrições. Ainda assim, são sempre belas e importantes. Todos os acontecimentos ocorrem fluentemente e tudo encaixa na perfeição. Cada parágrafo dá vontade de reler. Só tenho pena de ter passado tão rápido, pois é daqueles livros que não queremos que acabe.

quinta-feira, janeiro 01, 2009

Crepúsculo

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Não é um hábito meu escrever sobre filmes de que não gostei minimamente ("The Covenant/O Pacto", por exemplo) ou que, apesar de bons, me deixaram indiferente ("The English Patient/O Paciente Inglês"), principalmente porque acredito ser mais produtivo reflectir devidamente sobre os bons, e esquecer os maus. Abro, assim, uma excepção para "Crepúsculo", apenas porque acordei hoje oficialmente um ano mais velho, me sinto algo aborrecido e com vontade de escrever sobre qualquer coisa que seja.