segunda-feira, junho 30, 2008

:“O Sonhador”, Ian McEwan

Seduzido pela escrita de Ian McEwan com “Expiação”, e após a Sandra me ter aconselhado a leitura deste, comprei “O Sonhador”, um romance direccionado principalmente às crianças e jovens adolescentes mas que aos adultos não fica indiferente, ou pelo menos não deve. O que achei?
Ao virar da primeira página somos de imediato confrontados pelo universo de Peter Fortune, de dez anos, que aparenta ser semelhante a qualquer outra criança: vive com os pais e a sua irmã Kate, tem o rosto “pálido e sardento”, e “nunca apareceram médicos de bata branca a quererem interná-lo num manicómio”. A razão por que é diferente é que Peter é calado e vive sozinho entre a imaginação e a realidade, vivendo inúmeras aventuras. São essas aventuras que nos são apresentadas, quase em jeito de contos, embora mantenha a linha de continuidade dos acontecimentos de forma implícita. O primeiro capítulo Peter apresenta-se, e torna-se, assim, uma introdução ao livro:
“Neste livro encontram-se algumas das estranhas aventuras que ocorreram dentro da cabeça de Peter, contadas com todos os pormenores”.
São, de facto, estranhas, as aventuras que Peter vive, desde o momento em que trocou de corpo com um gato e um bebé, ou que quase foi assassinado pela vizinha por uma pistola, mas em todas se manteve o facto de que no final tudo passava de um sonho, afinal, é disso que esta obra trata, dos sonhos que temos. Serão eles a prova da realidade verdadeira ou não passarão de devaneios de um grande imaginador? É a questão que, talvez, “O Sonhador” nos coloca, mas acima de tudo, nos ensina a nunca deixar de sonhar, algo que tem sido esquecido frequentemente com os adultos, segundo a análise feita no último capítulo, “O Adulto”, em que Peter se transforma. Como oposto, temos “O Bebé”, que nos remete a uma altura que ninguém se recorda como foi, e podemos, dessa forma, olhar as coisas como um verdadeiro bebé:
O dia passou-se envolto numa névoa de divertimentos, refeições e sestas. De vez em quando, Peter lembrava-se de que devia ir procurar a varinha, mas logo a seguir os seus pensamentos caíam na armadilha do sabor extraordinário da comida, tão bom que a sua vontade era mergulhar o corpo todo lá dentro; ou então eram apanhados por canções que continham ideias estranhas, que requeriam toda a sua atenção - uma mulher que vivia num sapato, uma vaca que saltava por cima da Lua, um gato que estava num poço; ou, ainda, via qualquer coisa que precisava de meter na boca.
Pelos contos serem diferentes, também são originais. E esse é o que torna este pequeno livro tão delicioso, podemos até devorá-lo numa só tarde (uma boa oportunidade de leitura para quem está de férias e vai agora para a praia) e apreciar tudo o que Peter faz, lembrando com nostalgia a nossa infância.
É uma leitura simples, fácil e muito acessível, com uma moral muito entusiasmante. Aqui fica recomendado “O Sonhador”, deixando-vos com uma descrição bastante boa presente no livro:
Voltou-se e olhou para o mar. Estava cintilante até o horizonte longínquo. Estendia-se à sua frente, vasto e desconhecido. Uma após outra, as ondas vinham incessantemente desfazer-se na margem, assemelhando-se, na opinião de Peter, a todos as ideias e fantasias que haveria de ter pela vida fora. (…) Para além de todo (…) o movimento humano, o oceano ondulava, revolvia-se e deslizava, pois nada podia permanecer imóvel, nem as pessoas, nem a água, nem o tempo. (…) Começou a correr em direcção à beira-mar. Sentiu-se ágil e leve ao deslizar sobre a areia. «Vou deslocar», pensou. Estaria a sonhar ou a voar?

domingo, junho 22, 2008

:O Banquete de Casamento (1993) - Crítica

O Banquete de Casamento” (1993), realizado por Ang Lee é, sem sombra de dúvida, um daqueles raros casos que não nos custa reconhecer que irreverente, original, inovador, divertido e tocante são alguns dos muitos adjectivos com que podemos descrever esta película imperdível. Mais do que uma comédia que combina o drama e o romance como subgéneros, o nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro tem uma forte componente moral e ajuda-nos não só a compreender com mais facilidade outras culturas, mas também a acabar com alguns preconceitos ainda presentes na sociedade actual.

Wai-Tung (Winston Chao) é um bem-sucedido empresário tailandês na área do imobiliário naturalizado na cidade de Nova Iorque e que vive feliz com o seu namorado Simon (Mitchell Lichtenstein). Wai-Tung teria uma vida perfeita se não fosse a mentira que durante mais de vinte anos deu a entender aos seus pais (Sihung Lung como pai e Ah Lei Gua como mãe). Eles desconhecem a condição do filho e estão ansiosos por ver o único filho a dar o nó, dando-lhes, assim, netos. Simon forja, dessa forma, um esquema que beneficiaria não só Wai-Tung e os seus pais, como também uma das suas inquilinas, a artista plástica Wei-Wei (May Chin) que, sendo uma imigrante ilegal, desespera por um visto de residência americano. Todo o plano parece perfeitamente exequível até que os pais de Wai-Tung decidem sair da Ásia e ir de propósito para os Estados Unidos da América assistir ao casamento do filho. Wei-Wei muda-se para a casa de Wai-Tung e Simon que, por sua vez, protagoniza o papel do amigo na farsa. Realiza-se de forma apressada um casamento “à americana” para despachar todo aquele aparato e que desilude em grande escala os pais de Wai-Tung que decidem fazer outro casamento mais convencional que valorizasse as tradições asiáticas e que, após a cerimónia, se sucedesse um grande banquete com trezentos convidados, cortesia do dono do restaurante, amigo do pai do noivo. Tudo isto foi o suficiente para se suceder uma grande confusão, agravada por problemas como a distância relacional que se começa a sentir entre Wai-Tung e Simon, e o entusiasmo de Wei-Wei, que se chega a esquecer que é apenas uma actriz naquela grande encenação.

O rumo que o filme toma, terão de ver depois. Começo por aplaudir todas as interpretações deste fantástico elenco, sobretudo May Chin, que protagoniza a divertida Wei-Wei de uma forma absolutamente genial. Já Winston Chao e Mitchell Lichtenstein estiveram igualmente bem, trazendo até o grande ecrã uma naturalidade e um à-vontade enormes, favorecendo a imagem que se tem sobre as relações entre homossexuais, quase sempre estereotipadas como sendo ou promíscuas ou demasiado perfeitas. Destaco ainda a personagem do pai de Wai-Tung, interpretada por Sihung Lung, que conseguiu de uma forma perfeita representar alguém sábio e muito misterioso, sendo de certa forma o ponto de equilíbrio para a grande desordem presente no filme. Tudo nos actores, todos os diálogos, expressões e acções, nos parece espontâneo, contribuindo para um incrível e genuíno realismo que me impressionou bastante. É, evidentemente, um ponto muito positivo e ajudou para que este filme resultasse.

A história da fita em si é, em poucas palavras, completamente deliciosa. Percebe-se uma grande mestria na construção do argumento e também um grande cuidado em todos os acontecimentos e diálogos, algo que valorizo imenso. Em comparação com a maioria do cinema americano, onde tudo é previsível, repetitivo, irreal e cliché, diria que “Xi Yan” aproxima-se mais do cinema europeu (mais propriamente o francês, espanhol e italiano), onde já não é tomado tão em conta o sucesso que os filmes farão a nível monetário mas sim a sua potencial qualidade artística. Desde a cena em que Wei-Wei tenta, em vão, estrelar dois ovos à cerimónia do primeiro casamento, o espectador consegue perceber que tudo foi pensado, até o mais discreto gesto na primeira vez que se vê o filme nos passa ao lado, obrigando-nos, de certa forma, a revê-lo. De qualquer das formas, não nos é penoso voltar a ver aquelas cenas que nos entretêm. É comédia, sim, mas que utiliza piadas realistas e, ao mesmo tempo, engraçadas, sem serem forçadas (aconselho a todos verem esta cena). Para além disso há, como disse na introdução, os subgéneros, o drama e o romance, que se complementam para tornar este filme um verdadeiramente emocionante. Não serão poucos, certamente, os que se reverão em alguma cena deste “Banquete de Casamento”.

Muitos descrevem este período como o de ouro para Ang Lee, aplaudindo os seus filmes. Creio que todos concordamos que “Hulk” (2003) foi um ponto de viragem negativo para o realizador consagrado pela adaptação da obra de Jane Austen “Sensibilidade e Bom Senso”, que chegou mesmo a temer o futuro da sua carreira por um filme, mas que bem recuperou com o belíssimo “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005). Neste filme podemos ver uma boa realização, no entanto, sem nenhum plano memorável sem ser a do final, mas podemos reparar na grande dedicação com que Lee filmou as suas personagens e no esforço com que tentou sempre dinamizar a acção. A cena final está imensamente bem conseguida, traduz-nos um grande sentido de esperança, e resume-nos, de certa maneira, o propósito da fita, com uma a história que tem um lado de inovador e, por conseguinte, polémico. Isto porque o filme já tem quinze anos de existência e os temas abordados – a homossexualidade, a imigração e o choque cultural – são assuntos ainda muito actuais e que continuam a gerar discussão nos dias de hoje. Ajuda-nos a reflectir sobre todas as ideias pré-concebidas presentes dentro de nós, como indivíduos e cidadãos responsáveis, em grande medida, pelas medidas relacionadas com tais questões tomadas a nível político e social lugar onde nos inserimos. É claro que a tolerância é, por assim dizer, o valor central desta película e convém relembrar que deve ser considerada em todos os casos, para que, daqui a alguns anos, não seja preciso, por exemplo, demorar-se vinte anos para se assumir sexualmente.

É um filme que merece ser visto, revisto e saboreado, entretém-nos até o último minuto e faz-nos reflectir sobre importantes assuntos. Simplesmente imperdível e surpreendente.

Nota Final: 9/10